Para especialistas, lei de SP que abate pena de preso pela leitura da Bíblia fere Constituição
Janaina Garcia Do UOL,
em São Paulo
09/06/201804h00
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Para bancada evangélica, leitura e resenha da Bíblia deve servir para abater pena de presos em SP |
Especialistas em direito classificaram como inconstitucional o projeto de lei aprovado na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) esta semana que estabeleceu a possibilidade de diminuição da pena para presos pela leitura da Bíblia.
Hoje, por uma resolução de 2012 do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), os presos podem abater até 48 dias da pena por ano a partir da leitura e da resenha de livros.
A leitura de um livro e a produção de uma resenha sobre a obra equivalem a quatro dias de remição da pena. É possível fazer isso uma vez por mês. Segundo o documento, a participação do preso é voluntária, e a obra precisa ser do tipo "literária, clássica, científica ou filosófica, dentre outras". Porém, a escolha do livro varia de acordo com disponibilidade na unidade prisional.
O que os deputados fizeram agora foi derrubar o veto do ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) a um projeto de lei que, aprovado na Alesp no fim de 2017, especificava a Bíblia, livro sagrado do cristianismo, como uma das leituras possíveis para a remição dos apenados. Na avaliação jurídica do governo, legislar sobre execução de pena só cabe em instância federal, não estadual.
O projeto é de autoria de quatro deputados da bancada evangélica na Casa ligados ao PRB, partido vinculado à Igreja Universal do Reino de Deus, que atua na evangelização também em presídios. Para os autores da matéria, o fato de ela ter passado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) e pelo plenário justifica a derrubada do veto, ainda que, admitam, há a possibilidade de o governo apresentar uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) sobre a lei no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo).
Da forma como aprovado pela Alesp, a Bíblia passa a ser incorporada entre as possibilidades de leitura nos presídios equivalendo a 66 livros: 39 referentes ao Antigo, e 27 ao Novo Testamento.
Para o professor de direito penal da Faculdade de Direito do IDP-São Paulo João Paulo Martinelli, matérias referentes a execução penal são exclusivamente da alçada federal –o que justificaria, endossou, o veto do governo.
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Penitenciária de Tremembé em SP, seria uma das abrangidas pela lei que permite bíblia para abatimento do tempo de pena |
"A Constituição Federal é muito clara em estabelecer que assuntos relativos à execução penal são de competência exclusiva do poder legislativo federal. A competência da Alesp é muito restrita, nesse sentido, o que torna esse tipo de propositura, na forma, inconstitucional", avaliou.
De acordo com Martinelli, outro aspecto da lei estadual diz respeito ao conteúdo. "Por que dar uma atenção especifica à Bíblia, que é um livro-base para religiões cristãs? No Estado laico, ela deveria ser considerada um livro como outro qualquer.
O que foi feito é dar uma preferência a um em detrimento de outros, utilizando a estrutura de Estado para isso", definiu.
"Mas vejo como fator de insegurança aos presos que tentarem remir pena por aí, pois os juízes de execução penal podem entender que isso está fundamentado em uma lei inconstitucional", completou.
"Por que não citar a torá e ao alcorão também?", questiona criminalista
Professora de direito penal na FGV, a advogada Maíra Zapater lembrou que, pela legislação vigente, as penas podem ser remidas também a cada três dias de trabalho do detento –no caso, um dia de abatimento, dentro ou fora da prisão, a depender do regime.
"Mas desde que isso entrou em vigor, em 1984, nunca teve posto de trabalho para dar conta disso. No começo dos anos 2000, advogados e defensorias começaram a pedir a remição pelo estudo formal, por entenderem que isso cumpre função de reinserção do preso. Desde 2011, então, passou a ser dispositivo do STJ [Superior Tribunal de Justiça]", explicou. A resolução do Depen veio no ano seguinte.
Por outro lado, destacou a advogada, a população carcerária cresceu – é a quarta hoje mais numerosa do mundo– e outras medidas de remição começaram a ser aceitas, tais como atividade em corais de músicos.
"É nisso que vem, por exemplo, um projeto como esse da Alesp. Não acho ideal citar a Bíblia. Por que não a torá [livro sagrado dos judeus] e o alcorão [livro sagrado dos muçulmanos], também? Mas o projeto não diz que seja só a Bíblia", afirmou.
"Mas, tecnicamente, isso é lei federal, pois se está falando de cumprimento de pena. Há um risco de o preso ler livros da Bíblia para abater tempo de pena e a Justiça entender que isso não vale, já que se fundamenta em lei que afronta a Constituição", alertou. "Como não está na legislação de execução penal, vai ficar muito ao crivo do juiz", completou.
Coautor de lei nega interferência da Universal
O deputado Milton Vieira, que assina o projeto com outros três colegas do PRB, negou que a medida tenda a favorecer igrejas como a Universal, da qual integrantes participaram da fundação do partido e atuam em frentes de evangelização dentro de presídios.
"O PRB foi fundado por pessoas ligadas à igreja, mas somos independentes dela. O que vale para nós é que já existe resolução do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] que já dá remição de pena pela leitura de livros. Somos ligados à bancada evangélica e achamos interessante que a Bíblia seja incluída como livro possível para esse benefício, mas o preso adere voluntariamente", disse.
"O alcorão não muda muito em relação à Bíblia, mas, de toda forma, o projeto coloca a possibilidade de outras obras literárias, não impõe a Bíblia", declarou.
Sobre as críticas a respeito de inconstitucionalidade, o parlamentar resumiu: "O projeto passou pela CCJ [Comissão de Constituição e Justiça] e pelo plenário. De toda forma, grande parte do que enviamos ao governo é vetado, isso é praxe. Até que uma Adin seja apresentada, para nós, isso já é lei e está valendo", concluiu.
Bíblia "não tem um cunho apenas religioso", diz advogado
No entendimento do advogado penal e constitucional Adib Abdouni, no entanto, o que a Alesp fez foi apenas "facilitar a aplicação da Lei de Execuções Penais". "O estudo não é só da Bíblia – que por si pode ser entendida como obra literária clássica, cientifica ou filosófica passível de ser utilizada por qualquer pessoa. Não tem um cunho apenas religioso. Isso não fere a legislação já em vigor: estão
querendo é facilitar a aplicação da execução penal", destacou.
Procurada, a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) informou que cada um dos mais de cem Deecrims (Departamentos Estaduais de Execução Criminal) é que lista os livros aptos a serem resenhados pelos presos para obtenção da remição. A pasta não soube dizer, entretanto, se a Bíblia já consta em alguma dessas unidades, nem se há especialistas em assuntos de religião nos grupos que avaliam esses textos.
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Lei que reduz pena pela leitura da Bíblia é inconstitucional, dizem especialistas |
Fonte : UOL
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Governador sancionou a Lei |
Abaixo a lei na integra sancionada e publicada hoje no Diário Oficial
LEI Nº 16.648, DE 11 DE JANEIRO DE 2018
(Projeto de lei nº 390, de 2017, dos Deputados
Gilmaci Santos – PRB, Milton Vieira – PRB,
Sebastião Santos – PRB e Wellington Moura – PRB)
Partes vetadas e mantidas pela Assembleia Legislativa, do
projeto que se transformou na Lei nº 16.648, de 11 de janeiro de
2018, que institui, no âmbito dos estabelecimentos carcerários
das comarcas do Estado, a possibilidade de remição da pena
pela leitura.
O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO:
Faço saber que a Assembleia Legislativa decreta e eu
promulgo, nos termos do artigo 28, § 7º, da Constituição do
Estado, os seguintes dispositivos da Lei nº 16.648, de 11 de
janeiro de 2018, da qual passam a fazer parte integrante:
Artigo 1º - .................................................................
Parágrafo único - O disposto neste artigo aplica-se
igualmente às hipóteses de prisão cautelar.
Artigo 2º - .................................................................
Parágrafo único - Sendo a Bíblia a obra literária escolhida,
esta será dividida em 39 (trinta e nove) livros segundo o Velho
Testamento e 27 (vinte e sete) livros integrantes do Novo
Testamento, considerando-se assim a leitura de cada um destes
livros como uma obra literária concluída.
Artigo 3º - A remição da pena pela leitura tem também o
objetivo de levar ao preso o conhecimento, a educação, a cultura
e o desenvolvimento da capacidade crítica por meio da leitura e
da produção de relatórios de leituras e resenhas.
Artigo 4º - A participação do preso será sempre voluntária.
§ 1º - Podem participar todos os presos da unidade que
tenham as competências de leitura e escrita, necessárias para
a execução das atividades e da elaboração do trabalho final,
consistente em resenha da obra literária, objeto do estudo.
§ 2º - Terão preferência na participação os presos custodiados
que ainda não têm acesso ou não estão matriculados em
programas de alfabetização e escolarização.
Artigo 5º - A seleção dos presos e a orientação das
atividades serão feitas por comissão, nomeada e presidida pelo
diretor da unidade carcerária.
Parágrafo único - O diretor da unidade carcerária dará
ciência aos membros da comissão dos termos do artigo 130 da
Lei Federal nº 7.210, de 11 de julho de 1984.
Artigo 6º - Formada a turma de participantes, a comissão
promoverá oficina de leitura cientificando-os da necessidade de
alcançar os objetivos propostos para que haja a concessão da
remição da pena, a saber:
a) estética: respeitar parágrafo, não rasurar, respeitar
margem, letra cursiva e legível;
b) limitação ao tema: limitar-se a resenhar somente o
conteúdo do livro, isto é, não citar assuntos alheios ao objetivo
proposto;
c) fidedignidade: proibição de resenhas que sejam
consideradas plágio.
§ 1º - Participará da oficina de leitura, sempre que possível,
o escritor que tenha indicado a obra para leitura ou que seja o
autor do livro objeto de estudo.
§ 2º - Poderão, ainda, participar das oficinas de leitura, com
vistas ao incentivo à leitura e ao desenvolvimento da escrita
como forma criativa de expressão, todos os funcionários da
unidade prisional e possíveis colaboradores.
Artigo 7º - O participante terá o prazo de 30 (trinta) dias
para leitura da obra literária, apresentando ao final deste
período e no prazo de 10 (dez) dias resenha a respeito do
assunto.
Artigo 8º - A contagem de tempo para fins de remição será
feita segundo os critérios estabelecidos na Portaria Conjunta nº
276, de 20 de junho de 2012, do Departamento Penitenciário
Nacional – DEPEN, à razão de 4 (quatro) dias de pena para cada
30 (trinta) dias de leitura.
Parágrafo único - O participante, no prazo de 12 (doze)
meses, terá a possibilidade de remir até 48 (quarenta e oito)
dias de sua pena.
Artigo 9º - A remição pela leitura será assegurada de forma
paritária com a remição concedida ao trabalho e cumulativa
quando envolver a realização paralela das duas atividades, se
compatíveis.
Artigo 10 - A comissão analisará os trabalhos produzidos,
observando os aspectos relacionados à compreensão e
compatibilidade do texto com o livro objeto da leitura, bem
como aqueles relacionados no artigo 6º, “caput”, arguirá o
participante sobre o conteúdo do livro e da resenha por ele feita,
e atestará o prazo de 30 (trinta) dias de leitura.
§ 1º - O resultado da análise da comissão será enviado ao
Juízo por ofício, instruído com a resenha, a declaração de sua
fidedignidade ou de plágio, assinada por todos os membros da
comissão, e os atestados da arguição oral e do tempo de leitura.
§ 2º - O Juízo, após a oitiva do Ministério Público e da
defesa, decidirá sobre o aproveitamento do participante e a
correspondente remição.
§ 3º - Na hipótese de declaração de plágio, o Juízo
poderá realizar a arguição oral do participante, cientificando o
Ministério Público e a defesa da data agendada.
§ 4º - O prazo de 30 (trinta) dias de leitura, quando
constatado o plágio por decisão judicial, não será aproveitado
para fins de remição, ainda que o participante apresente outra
resenha sobre a obra lida.
Artigo 11 - A direção da unidade carcerária encaminhará,
mensalmente, ao Juízo cópia do registro de todos os
participantes, com informação referente ao item de leitura de
cada um deles.
Artigo 12 - O Governo do Estado poderá firmar convênios,
termos de cooperação, ajustes ou instrumentos congêneres com
órgãos e entidades da administração pública direta e indireta
para a execução das ações do projeto “Remição pela Leitura”.
Parágrafo único - Poderão participar das execuções destas
ações as igrejas colaboradoras que atuam internamente na
recuperação dos detentos do Sistema Penitenciário do Estado.
Artigo 13 - A remição da pena pela leitura será declarada
pelo juiz competente para a execução da pena, ouvido o
Ministério Público e a defesa.
Artigo 14º - ................................................................
Palácio dos Bandeirantes, aos 11 de junho de 2018.
Márcio França
Publicada na Assessoria Técnica da Casa Civil, em 11 de
junho de 2018.
Fonte: Diário Oficial