Por conta de uma mudança aprovada na Reforma Trabalhista, a indenização por danos morais aos trabalhadores vítimas do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG), está limitada a 50 vezes o salário que recebiam atualmente.
Leonardo Sakamoto
27/01/2019 15h06
Bombeiros buscam vítimas soterradas nos rejeitos em Brumadinho (MG). Foto: Antonio Lacerda/EFE |
A regra, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo ex-presidente Michel Temer, passou a valer em novembro de 2017. Antes, a indenização por dano moral poderia ser maior.
"É uma das maiores tragédias trabalhistas da história do país. A grande maioria das vítimas são trabalhadores que perderam suas vidas nas dependências da empresa", afirma Ronaldo Fleury, procurador-geral do Ministério Público do Trabalho. "Mas as indenizações às famílias de todos os que estavam trabalhando na Vale estão limitadas a 50 vezes o salário deles graças à Reforma Trabalhista."
O artigo 223-G da lei 13.467/2017, que trata da reforma, estabeleceu que haveria uma gradação para a concessão do dano moral que levaria em conta uma série de fatores com base em uma escala de gravidade. Para danos morais gravíssimos, o teto ficou em 50 salários do último salário do trabalhador. Para quem, hipoteticamente, recebia o salário mínimo (R$ 998,00), o teto seria de R$ 49.900,00.
Mulher e homem cobertos de lama são resgatados por helicóptero usado pelo Corpo de Bombeiros em Brumadinho (MG) após rompimento de barragem da Vale Imagem: Reprodução/TV Record |
"A Anamatra vinha alertando que, nos casos envolvendo acidentes de elevada gravidade, as limitações estabelecidas pela Reforma Trabalhista para as indenizações extrapatrimoniais gerariam extrema injustiça. Com esse horrível quadro de Brumadinho, a reforma passa a representar um contexto de iniquidade às famílias que pretendam reclamar, em juízo, pelos óbvios danos morais decorrentes da morte de seus entes queridos", afirma o presidente da Anamatra, Guilherme Feliciano. Segundo ele, a regra fere o princípio da dignidade humana, a independência do magistrado para fixar indenizações em relação a casos concretos e a isonomia, por medir as pessoas por seu salário.
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) sobrevoa a região atingida pelo rompimento de uma barragem de rejeitos de minério em Brumadinho (MG)Imagem: Isac Nóbrega/Presidência da República |
Guilherme lembra que os moradores de áreas atingidas pela onda de rejeitos da barragem podem reclamar na Justiça comum e não contam com limite para a indenizações. Já os que trabalhavam para a Vale, alcançados pela mesma tragédia, irão à Justiça do Trabalho, e terão que brigar com esse teto.
"Você coloca um preço na vida. O sofrimento de perder um parente custa no máximo esse valor. Isso é complicado até pelo caráter pedagógico para a empresa. Uma das funções do dano moral é que, sem causar enriquecimento ilícito, seja pedagógico para que o empregador nunca mais volte a causá-lo", explica Ivandick Rodrigues, professor de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogado trabalhista.
Animal na lama que se espalhou pela região de Brumadinho (MG) após rompimento uma barragem da mineradora Vale Imagem: Fernando Moreno/Futura Press/Estadão Conteúdo |
De acordo com ele, além do dano moral, há o dano material. A família de um trabalhador morto pode pedir uma pensão mensal vitalícia sob a justificativa de que ele ou ela sustentava a casa. Esse valor vai sendo reduzido à medida em que os filhos atingem a independência econômica.
O mesmo artigo da Reforma Trabalhista prevê que a indenização pelo dano moral dobre no caso de reincidência, mas apenas entre "partes idênticas". Ou seja, poderia valer a trabalhadores atingidos pelo rompimento da barragem em Mariana que sobreviveram e, agora, estavam trabalhando em Brumadinho.
Esse teto de 50 vezes o último salário poderia ser maior se o Congresso Nacional tivesse aprovado a Medida Provisória que amenizava algumas mudanças da Reforma Trabalhista. De acordo com o professor do Mackenzie, na MP havia um dispositivo que tomava como base para o teto não o salário do trabalhador, mas o limite dos benefícios da Previdência Social, ou seja, R$ 5.645,80. Nesse caso, o teto a ser pago seria de R$ 282.290,00. Isso elevaria a indenização dos trabalhadores com menor salário e reduziria aqueles com maior salário.
Homen se equlibra em uma casa que foi engolida pela lama da barragem 1 da Mina do Feijão, em Brumadinho Imagem: CADU ROLIM/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO |
Mas o mais importante: o texto da Medida Provisória afirmava que os parâmetros, inclusive dos 50 salários, "não se aplicam aos danos extrapatrimoniais decorrentes de morte". Ou seja, caso ela estivesse vigente, os magistrados que analisassem pedidos de famílias dos trabalhadores mortos não encontrariam essa limitação.
Para acelerar o processo de aprovação da Reforma Trabalhista, o Senado Federal abriu mão de sua função de casa revisora passando o texto que veio da Câmara sem modificações. Se houvesse mudanças, o projeto teria que voltar para a análise dos deputados federais. A justificativa é de que um acordo havia sido feito com Michel Temer para que alterações que amenizariam a reforma seriam encaminhadas vida Medida Provisória. O problema é que, apesar de proposta, ela acabou caducando porque a Câmara não a analisou a tempo.
Lama que se espalhou pela região de Brumadinho (MG) após rompimento uma barragem da mineradora Vale Imagem: Xinhua/Ernesto Rodrigues/Agência Estado |
Tragédia humana, ambiental e trabalhista
Com dezenas de mortos confirmados e mais de 200 desaparecidos, o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG), deve se configurar como uma das maiores tragédias trabalhistas do país. Ao que tudo indica, a maioria dos mortos serão de empregados da empresa ou de suas terceirizadas, cuja saúde e segurança estavam sob responsabilidade direta da mineradora.
"Há uma tragédia que envolve o meio ambiente natural, mas há também uma relacionada ao meio ambiente do trabalho", explica o presidente da Anamatra. "A despeito das responsabilidades criminais a serem apuradas, esse evento configurou um dos maiores e mais graves acidentes de trabalho do país. Portanto, há uma responsabilidade trabalhista que deve investigada e configurada."
Imagens aéreas mostram a devastação da região de Brumadinho (MG) após a queda da barragem 1 da Mina do Feijão, da mineradora Vale Imagem: Corpo de Bombeiros de Minas Gerais |
"Quando é feito um plano de contingenciamento e de emergência, deve-se calcular qual o curso da lama em caso de rompimento. Se foi bem feito, mostraria que esse curso passava exatamente onde estava o refeitório e a administração. Não há duvida que houve negligência da empresa", afirma Fleury.
"Essa tragédia demonstra a precariedade das condições de trabalho a que estão expostos os trabalhadores no Brasil e a imprescindibilidade dos órgãos de defesa dos direitos sociais." Em nota, a Procuradoria-Geral do Trabalho afirmou que foram demandadas medidas preventivas após o caso de Mariana que poderiam ter ajudado a evitar essa nova tragédia, mas que a empresa não as atendeu, entre elas, a verificação da estabilidade da mina, condições de segurança do trabalho e realização de estudos e projetos exigidos pelos órgãos fiscalizadores. Por conta disso, foi proposta uma ação civil pública, em outubro de 2017, que ainda se encontra em análise pela Justiça.
Animal tenta escapar dos rejeitos após o rompimento da barragem da mina do Feijão, situada em Brumadinho(MG) Imagem: Giazi Cavalcante/Estadão Conteúdo |
Um trabalhador da mineração que perdeu a filha em Brumadinho e pediu para não ser identificado afirmou que ela vivia com medo, mas não tinha alternativa de emprego na região, então continuava trabalhando.
"É certo que virão demandas por reparações de danos materiais e morais atinentes a trabalhadores diretos e terceirizados, e que deverão ser julgadas pela Justiça do Trabalho", afirma o presidente da Anamatra. Se as reparações de danos viessem aos moldes das deferidas nos Estados Unidos, para usar uma comparação recorrente, seriam bilionárias."
Fonte: Blog do Sakamoto
Imagens : UOL/ESTADÃO/O TEMPO/Rede Record