02 fevereiro 2019

DESEMBARGADOR ESCLARECE, NÃO É TÃO FÁCIL ASSIM : O presídio e a relação capital-trabalho

O governador de São Paulo anunciou a intenção de “privatizar presídios”, como consta da matéria publicada no Estado (18/1), o que faz parte de um novo modelo de gestão do sistema carcerário, redesenho que permitirá investir na capacidade de trabalho do preso, inclusive.






         
Luiz Sergio Fernandes de Souza*
31 Janeiro 2019 | 09h05

Luiz Sergio Fernandes de Souza. FOTO: JORGE ROSENBERG





O trabalho é tanto um dever quanto um direito do preso, obrigando-se o Estado a oferecer condições para o seu desempenho (arts. 11, IV, V, 17, 22, 25, I, 28 e 41, II, da Lei de Execução Penal). Lendo o artigo 28, que trata do trabalho do condenado como “dever social e condição de dignidade humana”, cuja finalidade é “educativa e produtiva”, fica a impressão de que o legislador se inspirou numa passagem de Cândido, na qual o personagem de Voltaire, depois de ver recusada, por um filósofo da Turquia, resposta sobre a razão da estranha natureza do homem, deparou-se com singela explicação, que veio nas palavras de um velho camponês muçulmano: “O trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade”.

Mas a inspiração do legislador, segundo o autorizado registro de Júlio Fabbrini Mirabete, veio de outra fonte, mais especificamente das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, adotadas pelo 1.º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes, realizado em Genebra (1955), documento este aprovado pelo Conselho Econômico e Social da ONU, em 31/7/1957, e recentemente revisto, o que resultou na edição das chamadas Regras de Mandela, texto elaborado pela Comissão sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal das Nações Unidas, em 22/5/15.

Regras de Mandela acrescentaram a exigência de que o trabalho, destinado a aumentar a habilidade do detento,
desenvolva-se com base em treinamento vocacional, não podendo ser estressante,
nem realizado em regime de escravidão ou servidão.


Nas Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros acha-se inscrita uma série de garantias sobre salubridade, indenização por acidente de trabalho, jornada máxima de trabalho e dia de descanso, remuneração equitativa, reserva de parte da remuneração para aquisição de objetos pessoais e ajuda à família, constituição de pecúlio para entrega ao preso quando posto em liberdade. A isto as Regras de Mandela acrescentaram a exigência de que o trabalho, destinado a aumentar a habilidade do detento, desenvolva-se com base em treinamento vocacional, não podendo ser estressante, nem realizado em regime de escravidão ou servidão.

A ressocialização, como finalidade da atividade laborativa, já se achava contemplada nas Regras Mínimas. A maior parte de todas essas orientações tem previsão expressa na Lei de Execução Penal (arts. 28 a 37) – cuja edição coincidiu com o início do processo de redemocratização brasileira -, ocorrendo lembrar que, na Carta de 1988, o trabalho foi elevado à condição de valor fundamental (art. 1.º, IV), e mais, que a Constituição passou a dispor sobre o dever do Estado de promover a formação para o trabalho (art. 214, IV), o que também se aplica ao preso, titular do direito social (art. 6.º).

A experiência indica a necessidade de um tratamento estrutural do problema carcerário, o que exige amplo
debate nacional, com o envolvimento da sociedade, que não conhece o presídio





Decerto, a pena imposta ao infrator é o limite legal do constrangimento a que pode ser submetido, de sorte que cabe ao Estado fomentar o trabalho, a ser exercido de acordo com a norma jurídica, exigência que não se concilia, porém, com o quadro de superlotação dos presídios. Uma das políticas legislativas adotadas para conter o crescimento da população carcerária – isto no início do período da redemocratização, coincidente com a edição da LEP – foi a instituição da pena de prestação de serviço à comunidade. Passados dez anos, o número de presos aumentou muito, razão por que se recorreu a outras estratégias, instituindo-se a transação como forma de evitar a ação penal e a suspensão condicional do processo. Além disto, em 2006, pôs-se fim à pena de prisão do usuário de drogas.

A experiência indica a necessidade de um tratamento estrutural do problema carcerário, o que exige amplo debate nacional, com o envolvimento da sociedade, que não conhece o presídio, limitando-se as pessoas a repetir, sem maior exame, que o preso custa para o Estado (o legislador inovou, em 2010, ao instituir o Conselho da Comunidade, ao qual compete visitar os presídios, ouvindo o preso e elaborando relatórios – arts. 80 e 81 da LEP). A discussão – de uma perspectiva crítica – não tem espaço no discurso eleitoral (o tema da humanização dos presídios, de um modo geral, é malvisto tanto por aqueles que se consideram pessoas de bem quanto pelos que se põem à margem da lei), de forma que mesmo iniciativas polêmicas, de uma maneira ou de outra, acabam contribuindo para estimular a reflexão.

O tema da humanização dos presídios, de um modo geral, é malvisto tanto por aqueles que se consideram
pessoas de bem quanto pelos que se põem à margem da lei




A construção de mais sete presídios – como anunciada – desafogará o sistema por algum tempo. Quanto a inserir a relação capital-trabalho no ambiente carcerário, relevante observar que apenas fundação ou empresa pública podem gerenciar o trabalho interno (art. 34, caput, da LEP), dependendo a prestação para o setor privado, no meio externo, do expresso consentimento do preso (art. 36, § 3.º, da LEP) e, no meio interno, da realização de convênio (com importante restrição – art. 34, § 2.º, da LEP). Diga-se mais, o contato com o presidiário exige respeito a sua integridade física e moral, bem como a compreensão de que o trabalho por ele desenvolvido cumpre função institucional, profilática e pedagógica, não se equiparando à relação contratual. Ausente este entendimento, corre-se o risco de promover o aviltamento da mão de obra, dentro e fora do sistema carcerário.

*Luiz Sergio Fernandes de Souza, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, mestre e doutor em Direito (USP), é professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da PUC-SP




Fonte: ESTADÃO