27 abril 2022

Sombra, o primeiro batizado no PCC, era agressivo e cruel desde a infância, mas morreu nas mãos do Capeta

Quando tinha 10 anos, Idemir Carlos Ambrósio, o Sombra, o primeiro presidiário batizado no PCC (Primeiro Comando da Capital), colocou uma jararaca-do-campo e uma cascavel em uma lata de óleo de 18 litros para brigar e saber qual cobra sairia vencedora. 

Josmar Jozino

Colunista do UOL

27/04/2022 

Idemir Carlos Ambrósio, o Sombra, o primeiro presidiário a ser batizado no PCC - Imagem: Reprodução
Esse instinto de maldade ele carregava desde a infância na humilde casa onde morava com a família, em São Carlos, no interior paulista.

A violência imposta pelo pai com as constantes surras e castigos em represália às peraltices do filho também ajudou a aumentar a agressividade do menino.

Certa vez, Sombra deixou uma brasa do fogão à lenha cair no chão. O pai dele, João Gumercindo Ambrósio, obrigou o filho a apagar o fogo pisando descalço na fagulha. Os sete irmãos ficaram revoltados. A mais velha saiu de casa.

Em outra ocasião, o pequeno Sombra viu uma cobra enrolada no mato. Ele pegou uma pedra e de longe atirou, acertando a cabeça do réptil. O pai soube da traquinagem. Por conta dessa e de outras travessuras, João amarrou o filho em uma laranjeira, sob sol quente, e apenas o soltou na manhã seguinte.

A crueldade com as vítimas nos roubos e com os rivais nas ruas era uma de suas características,
Idemir Carlos Ambrósio, o "Sombra", no pátio da Penitenciária de Araraquara, em 1994
Imagem - Acervo pessoal/JosmarJozino
A excelente pontaria despertou em Sombra o interesse por armas já na adolescência. Ele trabalhava como garçom em São Carlos e adquiriu um revólver "três oitão". Nas folgas, passou a treinar tiros no quintal de casa. Mirava os pregadores colocados no varal e acertava todos os alvos.

Não demorou muito tempo e Sombra deixou o trabalho para entrar definitivamente no crime. Tornou-se rapidamente especialista em roubos a bancos. Ele aterrorizou a população de Sorocaba, Ribeirão Preto, Leme, Piracicaba e Araras.

Os ladrões sentiam-se seguros roubando ao lado dele. A quadrilha também atuava na capital. Em agosto de 1989, o bando tentou assaltar o Banco América do Sul, na rua Senador Feijó. Um assaltante ficou ferido e o vigia morreu na ação. Os criminosos fugiram sem levar nada.

Mas dois meses depois, Sombra e os comparsas limparam o cofre e os caixas do Banco Nacional, também no centro da cidade. Líder da quadrilha, ele chegou a ser preso algumas vezes e conseguiu fugir, corrompendo agentes. A crueldade com as vítimas nos roubos e com os rivais nas ruas era uma de suas características.

Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, também conhecido como "Piranhão ou Fábrica de Loucos"

Liderança na prisão

No Capão Redondo, na zona sul paulistana, Sombra encontrou um desafeto em um bar. O inimigo bebia cerveja encostado em uma Brastemp. O atirador bom de pontaria sacou e descarregou a arma. Alvejado, o rival escorregou devagar, agonizando e deixando um rastro fatal de sangue na geladeira.

Em 1990, "a casa caiu" de vez para Sombra. Ele foi preso por policiais da Delegacia de Roubo a Bancos do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), em Cidade Ademar, zona sul, e não teve acerto com os "tiras". O prisioneiro passou por várias cadeias e para onde ia levava o travesseiro recheado de maconha.

Em 19 de fevereiro de 1993, o preso, acusado de cometer falta grave na Penitenciária 1 de Avaré, foi transferido para o castigo na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, no Vale do Paraíba, chamada pelos prisioneiros de "caverna" e "campo de concentração" por conta dos maus-tratos.

Durante um banho de sol, Sombra conheceu César Augusto Roriz Silva, o Cesinha. Ambos ficaram amigos e conversaram muito sobre o massacre de 111 presos ocorrido em 2 de outubro de 1992 na Casa de Detenção, no Carandiru, zona norte de São Paulo.

Após comandar a megarrebelião no ano de 2001, "Sombra" que estava preso na Penitenciária de
Avaré I - "Dr. Paulo Luciano Campos" de Avaré foi tranferido novamente para a Casa de Custódia de Taubaté
Cesinha vibrou ao ouvir do amigo que um policial militar havia sido morto e que ao lado do cadáver tinha uma faixa dizendo: "Agora só faltam 110"! Em Taubaté, Sombra foi um dos presos que mais criticou e protestou contra o chamado "Massacre do Carandiru".

Sob o pretexto de lutar para evitar uma nova carnificina nas prisões, Sombra pregou em Taubaté a união dos detentos e foi um dos principais idealizadores da criação de uma espécie de "sindicato do crime" para lutar contra as injustiças e a opressão no sistema prisional.

Assim foi criado em 31 de agosto de 1993, na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, o PCC (Primeiro Comando da Capital). Cesinha foi um dos oito fundadores e também o padrinho de Sombra, o primeiro preso a ser batizado na facção criminosa.

Penitenciária I "José Parada Neto" de Guarulhos, Região Metropolitana de São Paulo

Poder, respeito e reverência

Depois da fundação do PCC, Sombra passou por vários presídios e em todos foi reverenciado e respeitado pelos prisioneiros por causa do "currículo" no mundo do crime e, principalmente, por ser o primeiro batizado na organização criminosa.

Uma prova dessa liderança foi demonstrada em 1996 na Penitenciária "José Parada Neto", em Guarulhos, na Grande São Paulo, até então dominada por integrantes do PCC.

Funcionários que trabalharam na unidade contam que Sombra impunha tanto respeito à massa carcerária que nas manhãs ensolaradas, sempre usando um short vermelho, caminhava em direção à quadra de futebol, carregando em uma das mãos uma moeda e na outra um lençol.

Ele batia apenas uma vez a moeda em uma das traves. Os presos que jogavam bola entendiam o "recado" e saíam rapidamente do local. Sombra estendia o pano sobre o cimento e se deitava para tomar seu tradicional banho de sol. Não muito longe, os fiéis comparsas garantiam a segurança do chefe.

Cadastro de Controle Interno da Casa de Detenção de São Paulo, do sentenciado Idemir Carlos Ambrósio

Nas mãos do "Capeta"

Essa liderança durou até o dia 27 de julho de 2001. Sombra estava de volta à Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Foi mandado de volta ao castigo sob a acusação de ter ordenado a primeira e grande megarrebelião de fevereiro de 2001 no sistema prisional paulista.

No banho de sol, na quadra do pátio de Taubaté, um grupo de presos liderados por Vinícius Brasil Nascimento, o "Capeta", atacou Sombra. Ele foi enforcado com um cadarço de sapato. Teve também afundamento de crânio devido a pancadas na cabeça contra o chão e uma parede.

Funcionários do Instituto Médico Legal transportam o corpo de Idemir Carlos Ambrósio, o Sombra
O PCC decretou luto de sete dias no sistema prisional. O corpo de Sombra foi enterrado em 28 de julho de 2001 no Cemitério de Vila Alpina, zona leste. No velório, uma bandeira e coroas de flores foram colocadas ao lado do caixão com as siglas do Primeiro Comando da Capital.

Um líder do PCC contou que Sombra foi assassinado porque mandou matar sem ordem dos fundadores da facção um traficante de drogas conhecido como "Macarrão", dono de bocas de fumo no bairro do Capão Redondo. 

Condenado a 120 anos por roubos, homicídios e formação de quadrilha, Sombra foi assassinado cruelmente do mesmo jeito que mandou matar vários rivais nas prisões e nas ruas de São Paulo. Aos 41 anos, o primeiro preso batizado no PCC morreu literalmente nas mãos do "Capeta".

Idemir Carlos Ambrósio "Sombra", de ex garçom a primeiro batizado no PCC

Entrevista com Gabriel Feltran autor do livro “Irmãos, uma História do PCC”

Megarrebelião comandada por Sombra completa 21 anos

No dia 18 de fevereiro de 2001, o Primeiro Comando da Capital (PCC) foi apresentado ao Brasil e ao mundo. Idemir Carlos Ambrósio, o ex-garçom de São Carlos comandou, do “Piranhão”, apelido da Casa de Custódia de Tratamento de Taubaté, onde estava encarcerado, uma megarrebelião, que envolveu 29 unidades prisionais e contou com a adesão de 27mil detentos. 

O saldo de tal evento foi sangrento: 16 presos assassinados e dezenas de feridos. Sombra usou o telefone celular para comandar o motim. A demonstração de força não havia sido a primeira, mas foi a que revelou a triste realidade para o Brasil: as cadeiras de São Paulo estavam dominadas pelo crime organizado. 

Gabriel Feltran é autor de diversos livros sobre crime organizado no Brasil, entre eles 'Irmãos- Uma História do PCC'
O segundo grande evento do PCC viria em maio de 2006 com o “Salve Geral”, que resultou na morte de quase 50 policiais e centenas de moradores da periferia. Mas Sombra não viveria para viver este segundo megaevento. 

Ele foi enforcado no próprio Piranhão, aos 41 anos cinco meses depois do motim de fevereiro de 2001. Nesta entrevista exclusiva, o professor da UFSCar e escritor, um dos maiores pesquisadores do tema crime organizado, Gabrel Feltran, fala desta guerra civil não declarada que parece não ter data para terminar.  Ele é autor de “Irmãos, uma História do PCC”.

Mais de 400 pessoas foram mortas em seis meses pelo PCC ( Vídeo de 2018)

PRIMEIRA PÁGINA –A rebelião de 18 de fevereiro de 2001 envolveu 29 unidades prisionais de SP e apresentou o PCC ao mundo. Como o senhor vê este episódio na história do crime organizado no Brasil? Foram 17 mil detentos amotinados com 16 execuções.

GABRIEL FELTRAN – É um episódio central na história do crime no Brasil, e particularmente na história do PCC. Além da grande quantidade de vítimas, o episódio fica marcado pela primeira grande aparição pública do PCC, que tinha nascido em 1993 mas que a grande imprensa e as autoridades preferiam ignorar. Depois de fevereiro de 2001, não foi mais possível.

PP – Porque o PCC usa a decapitação de inimigos como um ritual e como uma marca do grupo?

GF – Esse terror, essa violência extrema, é característica de situações de guerra, quando o outro é desumanizado e tratado como uma coisa. Essa alteridade radical já foi observada em muitas situações de guerra, e muitos autores já trataram dela (ver por exemplo “A guerra não tem rosto de mulher”, de Svetlana Aleksiévitch, que estou lendo agora inclusive). Na “época das guerras” nas periferias e cadeias, esse terror aparece não apenas com o PCC, mas em muitas outras situações. Em períodos de “bandeira branca hasteada”, o PCC é muito mais conhecido por sua capacidade de fazer alianças internas ao mundo criminal, do que a partir de cabeças cortadas. Comentei um pouco sobre isso numa matéria há uns anos atrás (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49181204)

PCC se expandiu de forma vertiginosa e com um certa cumplicidade de quem tinha poder e poderia te-los parado
PP – Qual evento foi mais importante para o crime organizado: a megarrebelião de fevereiro de 2001 ou o Salve Geral em 2006?

GF – Ambos marcam a história do crime e do PCC no Brasil de maneiras diferentes. A Mega de 2001 foi o nascimento público do PCC, e as consequências dos eventos para a facção produzem uma revolução interna, como trabalho no meu livro “Irmãos”. Nessa transformação, o PCC deixou de se organizar em estrutura piramidal e com lideranças personalizadas. Isso foi decisivo na história da facção, seu momento mais relevante. Em tamanho, no entanto, os eventos de maio de 2006 são ainda mais impressionantes. Em 2006, mais de 90 unidades prisionais e de internação de adolescentes se rebelaram ao mesmo tempo, 45 policiais foram mortos nas ruas e a reação das forças da ordem deixou ao menos 496 mortos nas periferias. A partir das transformações que se seguiram a fevereiro de 2001, e a maio de 2006, a reflexão interna ao PCC fez notar que a facção se beneficiaria muito mais ao trabalhar na sombra, sem muito alarde, e conquistando mercados ilegais (o mercado transnacional de cocaína passa, mais tarde, a ser o mais lucrativo no mundo criminal). Por isso a facção cresce tanto ainda hoje, já atuando em cinco continentes.

PP – Em que o PCC se diferencia da Costa Nostra, da Yakuza, da Máfia Russa ou dos Carteis Colombianos ou Mexicanos?

GF – A forma de liderança no PCC não é personalizada, como nessas outras organizações criminais. O poder não é da pessoa, mas da posição. Muitos pensam que o PCC é uma empresa, mas ele é muito mais uma sociedade secreta de muitos empresários do crime, uma “maçonaria do crime”, para facilitar a compreensão. Nenhum irmão é, em princípio, maior que outros; mas há posições de honra, conquistadas pela caminhada de cada um no crime, que são posições de responsabilidade. Assim, se qualquer um, em posições mais altas ou mais baixas, pode ser questionado quanto ao seu proceder e é essa busca por um proceder correto, nos parâmetros internos ao crime, claro, que faz com que as reputações e os poderes se distribuam. Isso é diferente de todas as outras organizações criminais brasileiras, e também as estrangeiras que conheci. E sem dúvida, essa estratégia favorece o crescimento rápido da facção.

Em São Carlos, 'Sombra' agia no bando conhecido como 'Trio Parada Dura' (Claudio Dias/Reprodução)
PP – Na sua opinião, Sombra foi o maior bandido da história de São Carlos? Por que ele foi morto?

GF – Da história recente, sem dúvida é o mais famoso. Sombra foi morto em situação controversa, meses após a Mega de 2001, justamente nesse período de “revolução interna”, em que o PCC passava por transformações muito relevantes. Mas não conheço detalhes sobre a morte dele.

PP – Como seria possível combater o PCC de forma a extingui-lo?

GF – Termino o meu livro “Irmãos” dizendo que a forma “sociedade secreta” de organizar o poder é mais antiga do que a forma “Estado”. O problema ainda é mais grave quando as nossas políticas de segurança são focadas em prender pequenos operadores de grandes mercados (drogas, armas, veículos roubados, contrabando). Esses pequenos operadores, na cadeia, fortalecem as facções, que nasceram e cresceram dentro delas. Se não revisarmos toda nossa política de segurança, focando na diminuição e controle dos mercados ilegais, seja por regulação estatal ou mercantil, associada à proteção social dos que são fortemente explorados nesses mercados (até morrerem, literalmente), vai ser difícil.

Em agosto de 1985, 'Sombra' e o comparsa roubavam um casal de estudantes em São Carlos (Claudio Dias/Reprodução)
PP – Em 21 anos o que mudou no sistema prisional paulista?

GF – Como já era de se esperar, nesses 21 anos o sistema prisional que tinha sido integralmente reformado e reconstruído, se deteriorou enormemente. Desde o século 18 as prisões são reformadas para serem novamente reformadas em seguida, sempre na direção de mais punição e disciplina, e sempre caem no mesmo lugar: superlotação, reprodução de grupos criminais, corrupção sistêmica. O sistema prisional paulista passou de 45 mil presos no início dos anos 1990, quando começaram as reformas, para 230 mil presos nos últimos anos. Produzimos mais de 1,3 milhão de ex-presidiários, que somados às suas famílias, são mais de 10% da população do estado. Um sistema desse tamanho consome rios de dinheiro público, evidentemente apropriado por muita gente – que participa de licitações e fornece serviços e que não quer que ele diminua, ao contrário. Nesse jogo infernal, fortaleceu-se a hegemonia de uma só facção no estado todo, o PCC, e a corrupção sistêmica faz com que muito dinheiro transite dos cofres públicos e dos mercados ilegais para os mercados de proteção. A nossa política de segurança, que não pensa em outra coisa se não em prisão e guerra, fez água. Mas continua-se apostando na mesma política, agora mais radical. Vai continuar fazendo água, e derramando sangue.

PP – Esta “guerra civil” não declarada pode um dia acabar?

GF – Quando eu era criança em São Carlos, nos anos 1980, morava na Padre Teixeira com um murinho de 80 cm de altura. A casa em que eu morava hoje tem um arame farpado em espiral. Uma das 20 melhores cidades do Brasil para se viver está assim, cheia de condomínios fechados e vivendo com medo. Imaginemos como está os lugares mais pobres do Brasil, que tem mais de 5 mil municípios. Se parássemos para pensar, e trabalhássemos baseados em evidências, e não em ideologias, teríamos alguma chance. Do jeito que está, e do jeito que vai, com certeza teremos ainda décadas de 60 mil assassinatos por ano no país, se não mais. E de grades cada vez mais altas dos condomínios, de alambrados e arames farpados em espiral. Não é uma boa escolha.

Fonte: UOL/Primeira Página/Bandeirantes/CBN Ribeirão Preto

0 comments:

Postar um comentário

Deixe seu comentário e obrigado pela sua colaboração.