País viu nova queda no indicador de assassinatos em 2022. Pesquisadores apontam influência da redução da tensão entre grandes grupos criminosos organizados, além de facções locais.
Por Marco Antônio Carvalho e Ítalo Lo Re
24/07/2023
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| Detentos se rebelaram no presídio de Alcaçuz, na Grande Natal, e se envolveram em combate que deixou dezenas de mortos Foto: Marco Antônio Carvalho/Estadão - 19/1/2017 |
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou neste mês os dados mais recentes de violência, mostrando queda de homicídios no Brasil em 2022, a quarta em cinco anos.
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| Bandeiras expõem guerra de facções em presídio no RN após massacre - 17/01/2017 |
Um grupo de sete pesquisadores se debruçou sobre o tema e publicou em 2022 um estudo analisando a variação de homicídios em quatro capitais (São Paulo, São Luís, Maceió e Porto Alegre) e a relação com as dinâmicas das facções nesses territórios.
O trabalho foi publicado na Dilemas, revista de estudos de conflito e controle social, ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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| Alcaçuz, capítulo da guerra escrita com sangue entre PCC e FDN |
Gabriel Feltran, hoje diretor de pesquisa do CNRS (centro de pesquisa ligado ao governo francês) e um dos autores do artigo, disse ao Estadão que “a expansão do CV-PCC em aliança até 2016, a guerra entre os dois grupos pelo País todo em 2017, e a acomodação desse conflito em seguida, na maioria dos territórios, tem muito mais influência nas taxas agregadas do que qualquer política pública”, diz. Entre os autores do trabalho, estão pesquisadores de instituições como as universidades federais de São Carlos, Rio Grande do Sul, Alagoas, Maranhão e Pernambuco.
Gestores citam com frequência políticas de controle e investigações de homicídio, prevenção de violência voltada aos jovens e repasse de verba e equipamentos às polícias como exemplos de políticas públicas que poderiam ter influência decisiva na segurança. As estratégias são importantes, mas a redução de indicadores, na visão desses e de várias correntes de especialistas em segurança, está mais ligada à estabilização autônoma do conflito entre facções do que à atuação estatal.
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| Os narcotraficantes João Pinto Carioca, o "João Branco" e José Roberto Fernandes Barbosa, o "Zé Roberto da Compensa" são os criadores da FDN |
Naquele mesmo mês, rebeliões em cadeias de Boa Vista e Natal, que somaram mais dezenas de vítimas assassinadas, voltariam a evidenciar a disputa. O ano de 2017 terminaria com o recorde de 64 mil homicídios no País. Em 2023, com o equilíbrio na disputa, o patamar ficou em 47 mil assassinatos, 17 mil a menos do que o visto no auge da guerra.
“É óbvio que variações de homicídios têm aspectos multicausais, mas uma coisa que bato na tecla há muito tempo é que essas variações estaduais bruscas muitas vezes estão associadas às dinâmicas dos mercados criminais”, disse ao Estadão o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Paes Manso, que não participou do estudo citado.
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| Facções criminosas atuam em quase metade dos bairros de Porto Alegre, de 83 bairros da capital gaúcha, 38 estão sob domínio dessas facções |
Porto Alegre teve guerra entre Bala na Cara e Antibala
Gabriel Feltran, hoje professor da Sciences Po (França), explica que o estudo olha para o perfil das vítimas de 2000 a 2020 e traça sinopses dos conflitos armados em quatro cidades (São Paulo, Porto Alegre, Maceió e São Luís) a partir de pesquisas qualitativas. “Quando as linhas do tempo se sobrepõem, mostra-se que nossa hipótese (do peso das facções) tem boas chances de ser verdadeira”, diz.
O estudo exemplifica o caso de Porto Alegre, onde o conflito entre o grupo Bala na Cara (BNC) e os Antibala começou a se acentuar em 2015, quando o total de homicídios da capital gaúcha chegou a cerca de 700. No ano seguinte, “os já veteranos BNC digladiaram-se com os recém-criados Antibala e, no ano mais brutal da história de Porto Alegre, o total de homicídios chegou a 903″. Com o fim do confronto, as taxas viriam a despencar em 2018.
Depois de um tempo, a guerra ficava cara para os grupos criminosos. “Antes, o grupo que liderou os Antibala era desconhecido cidade afora, mas adquiriu duas galerias na maior prisão do Estado em 2017, fortalecendo consideravelmente sua capacidade de participar dos mercados ilegais. Dali em diante, a dinâmica das vendetas mais atrapalhavam do que contribuíam para suas novas pretensões e capacidades”, dizem os pesquisadores no artigo.
“Os BNC, por sua vez, estavam mais interessados em dirigir seus esforços para o interior do Estado”, acrescentaram.
Feltran explica que as taxas de homicídios variam muito pelo Brasil, no tempo e no espaço. “Mas o perfil preferencial da vítima, não. É assassinado no Brasil, sobretudo, o operador baixo dos mercados ilegais (drogas, veículos roubados, contrabando, armas etc.)”, afirma.
"É assassinado no Brasil, sobretudo, o operador baixo dos mercados ilegais (drogas ilegais, veículos roubados, contrabando, armas etc.)".
Gabriel Feltran, pesquisador
No Brasil, ressalta o pesquisador, esses operadores são jovens negros, pobres e com escolaridade defasada. “Em outros países da América Latina, grupos indígenas pauperizados, (são) recrutados nas redes criminais.”
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| Presídio Central tem mais de 2 mil detentos acima da capacidade (Foto: Reprodução/RBS TV) |
Mas atribui a queda de indicadores a ações da polícia. “Devido ao reforço das ações de segurança e aumento dos investimentos no combate à criminalidade, o Rio Grande do Sul vem reduzindo, mês a mês, os índices, como verificado no 1º semestre de 2023. Em maio, por exemplo, o RS registrou o menor número de homicídios no Estado dos últimos 13 anos”, aponta.
Questionada sobre o papel das facções na dinâmica, a pasta acrescenta que os resultados “refletem o planejamento tático, operacional e de inteligência adotados” pela secretaria, além do aumento de efetivo, investimentos e qualificação dos policiais.
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| "PCC é produto, produtor e regulador da violência", segundo pesquisador canadense que realizou pesquisa em São Paulo |
PCC reduziu os homicídios em São Paulo?
O anuário do Fórum Brasileiro de Segurança divulgado nesta semana traz novamente o Estado de São Paulo com a menor taxa de homicídios do País: são 8,4 casos a cada 100 mil habitantes. A média nacional ficou em 23,4. A curva descendente do crime nas cidades paulistas impressiona ao deixar no passado a taxa que superava os 60 casos para cada 100 mil pessoas. Uma dúvida frequente relativa ao período diz respeito à influência do PCC na redução drástica.
A resposta, dizem especialistas, tem elo com a hegemonia que a facção criada em Taubaté em 1993 obteria ao longo dos anos 2000. “A institucionalização pelo PCC de políticas faccionais de esclarecimento de homicídios, mediação de conflitos por uma terceira parte, reparação da vítima e responsabilização dos agressores, com controle estrito do armamento, fez com que parcelas excluídas do sistema de justiça formal sentissem que efetivamente havia uma política de segurança nas quebradas”, descrevem os pesquisadores.
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| PCC proíbe empinar moto na periferia de SP e espanca quem desobedece |
“Escrevo sobre esse tema desde 2003. Em nenhum momento disse que a hegemonia do PCC explicava sozinha a queda de homicídios em São Paulo”, disse Feltran. “Sempre afirmei, no entanto, que ela era a causa fundamental dessa redução. Demonstrei os mecanismos pelas quais ela se dava e os problemas das demais hipóteses estudadas. Seguimos assim por vinte anos e nossa interpretação é bastante sólida.”
Mas há diferenças entre regiões. Pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Fabio Candotti diz que, sobretudo no Norte – que tem sido marcado pela sobreposição de crimes ambientes com o narcotráfico –, é preciso observar a atuação das facções junto a outras dinâmicas. “Não é possível pensar a regulação de mercados ilegais de drogas e as mortes sem pensar a atuação policial e de milícias”, afirma.
Candotti afirma que associar o alto índice de assassinatos na Amazônia Legal só a conflitos entre facções reduz a complexidade da questão.A hipótese principal é que facções como o PCC e o Comando Vermelho não necessariamente comandam todos os “grandes mercados ilegais” da região, mas compartilham rotas com outros criminosos e, em alguns casos, atuam como uma espécie de “escolta armada” de grupos que praticam crimes como garimpo ilegal.
Ceará convive com altas e quedas da taxa de mortes
O Ceará observou de perto, como quase nenhum Estado, a variação de assassinatos nos últimos dez anos. Em 2016, registrou 3,5 mil homicídios. Em 2017, o dado subiu para 5,3 mil, acompanhando o recorde nacional. No ano seguinte, cairia para 4,7 mil. Em 2019, viria uma baixa mais significativa para 2,3 mil. Mas em 2020 o patamar retornou para 4,1 mil.
Luiz Fábio Paiva, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica a mudança no perfil da violência vista no Estado. “Se antes havia dois grupos armados brigando dentro de um bairro, agora há a unificação desses grupos no interior de um grupo que trabalha em uma escala maior, que é a facção, e todos esses grupos unidos na forma de facção operando uma série de conflitos armados que estão interligados”, detalhou.
A partir dali, as cidades cearenses não deixariam de ver um confronto com cada vez mais vítimas. “Um conflito dentro de um bairro passou a ser um conflito entre facções rivais e esse conflito dentro do bairro está conectado ao que está acontecendo em toda a cidade e em todo o Estado. O que a gente observou em 2016, 17 e 18, foi uma intensificação do número de homicídios. E isso obviamente nos leva a acreditar que isso tem a ver com a dinâmica criminal que operava no local”, disse.
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| Pacto firmado entre PCC, CV e GDE apontam para união contra inimigo em comum, segundo analistas; mensagens atribuídas aos grupos reforçam pacto temporário |
“No entanto, o que se observa em 2023? As facções continuam sendo uma realidade, há brigas, há disputas, há novas configurações com a massa carcerária, uma fragmentação das próprias facções, mas a gente ainda vê esses elementos, territórios controlados, grupos alinhados”, apontou.
O que a gente observa hoje, em 2023? As facções continuam sendo uma realidade, há brigas, há disputas, há novas configurações com a massa carcerária.
Luiz Fábio Paiva, professor e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Paiva vê as facções não apenas como um fenômeno do crime, mas social. “Conseguiram espaço, criar um método, maneira de fazer o crime que independentemente da prisão de pessoas que ocupam posição de liderança, esses grupos continuam existindo. A maneira de fazer da facção continua sendo uma referência para quem está envolvido na prática criminal e isso também tem efeitos sociais”, acrescentou.
Bruno Paes Manso aponta o efeito de uma profissionalização sobre as atividades da facção que tem resultado em menos conflitos. Para todo mundo que está no crime, que está ganhando dinheiro com drogas, é sempre mais interessante não ter conflito com o grupo rival, ter seu próprio espaço configurado e consolidado, para ganhar dinheiro com menos custos, diz ele. “Quando surge algo novo, normalmente a partir desse desequilíbrio há, muitas vezes, um efeito de conflitos, que duram bastante tempo. Mas a tendência hoje diante de lucros bilionários é ter uma posição racional e profissional para ganhar mais dinheiro e ter menos custos.”
Questionada sobre o assunto, a Secretaria de Segurança do Ceará destacou uma série de ações governamentais no combate ao crime. “Para chegar a esses resultados de reduções consecutivas (de indicadores de mortes violentas intencionais), as forças de segurança realizam, de forma permanente, operações de combate à criminalidade em bairros de Fortaleza, na região metropolitana e em todo o Estado.”
PCC e o Comando Vermelho passam a investir em grilagem, madeira e garimpo na Amazônia
| PCC e o Comando Vermelho passam a investir em grilagem, madeira e garimpo na Amazônia, em vez de apenas administrar as rotas que trazem cocaína da Bolívia e da Colômbia, as organizações criminosas decidiram diversificar os negócios ilícitos na região |
Soluções passam por investigação e mudança na ‘fábrica de criminosos’
Para Feltran, para resolver o problema é preciso aprender com o que deu certo no Brasil e no exterior.
Ele cita quatro medidas de redução de homicídios:
*regulação de mercados ilegais, como o que se fez com os desmanches em SP;
*reversão da política carcerária atual, que faz das “cadeias fábricas de criminosos”, “caríssimas as cofres públicos”;
*foco no crime violento, “que gera sensação de insegurança, e sobretudo na investigação de homicídios”;
*controle democrático das atividades policiais, evitando autonomização e politização militarista das polícias.
“Infelizmente o fenômeno é tão grave e tão pouco compreendido que as políticas estatais tocam pouco em sua dinâmica”, destaca Feltran.
Fonte: Jornal O Estado de São Paulo


















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