Matança no Interior
Série especial mostra a dinâmica das mortes em diferentes lugares do país
THIAGO AMÂNCIO
AVENER PRADO
ENVIADOS ESPECIAIS A JOINVILLE (SC)
04/12/2017 23:15
JOINVILLE (SC)
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Detentos ligados à facção criminosa Primeiro Grupo Catarinense tomam banho de sol em presídio de Joinville |
Passava das 23h00 daquela quinta-feira, 30 de março, quando uma mulher achou uma sacola em um ponto de ônibus na zona norte de Joinville (SC). Resolveu ver o que tinha dentro dela. Encontrou uma cabeça. De gente.
O vídeo da decapitação de Alan dos Santos, 24, já circulava por celulares da cidade desde as 18h daquele dia. O restante do corpo foi encontrado no dia seguinte, na cidade vizinha de Araquari.Segundo a polícia, o jovem foi mais uma vítima da guerra entre facções, que, nos últimos anos, levou a uma escalada da violência em Joinville e em toda Santa Catarina.
De 2011 a 2016, o número de mortes violentas (incluindo homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte) cresceu 18% no Estado (de 880 para 1.037).
Mas a situação em Joinville, a maior cidade de SC com 577 mil habitantes, é mais alarmante. Lá, 71 pessoas foram mortas em 2011, segundo a Secretaria de Segurança Pública, contra 131 no ano passado -um avanço de 85%.
O cenário neste ano tende a ser ainda pior: até a última sexta (1º), foram 127 mortes.
JOINVILLE
Mortes violentas
Variação de 2011 para 2016: +84%
127 foi o número de mortes violentas neste ano na cidade até 1º.dez
*Vítimas de homicídio doloso (incluem policiais mortos em confrontos), latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial. Fonte: Secretaria de Segurança Pública de SC
Variação de 2011 para 2016: +18%
850 foi o número de mortes violentas neste ano no Estado até setembro
*Vítimas de homicídio doloso (incluem policiais mortos em confrontos), latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial. Fonte: Secretaria de Segurança Pública de SC
*Vítimas de homicídio doloso (incluem policiais mortos em confrontos), latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial. Fontes: IBGE, Secretaria de Seg. Pública de SC e Fórum Brasileiro de Seg. Pública
Joinville acompanha tendência nacional que especialistas em segurança pública chamam de "interiorização da violência": a onda de assassinatos tem se deslocado das grandes capitais, tradicionalmente violentas em suas periferias, em direção a municípios menores, mas também bastante populosos.
A cidade, rica, de colonização alemã e com IDH considerado muito alto (0,809), tem taxa de 23 mortes violentas para cada 100 mil habitantes, abaixo da média nacional de 29,7, mas muito acima da taxa de 13,6 que registrava em 2011.
FACÇÕES
Foi por volta de 2007 que policiais militares encontraram um formulário de filiação à facção criminosa PCC na até então pacata cidade catarinense. Era o primeiro indício da presença do bando paulista por lá, segundo o sargento Elisandro Lotin, presidente da Associação Nacional de Praças da PM e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública -ONG formada por especialistas no tema.
Há uma série de motivos para a ida do grupo à cidade: a proximidade com o Paraná (onde o PCC é dominante), a busca de novos mercados consumidores de drogas e, principalmente, a proximidade com diferentes portos, como os de Itapoá, São Francisco do Sul e Itajaí, que podem servir de escoamento de narcóticos para outros países.
Mas o PCC esbarrou em outra facção já disseminada por Santa Catarina, o PGC (Primeiro Grupo Catarinense), majoritária no Estado. O conflito entre os dois grupos é tido como a principal causa do aumento da violência por lá.
A tensão se acirrou ainda mais desde o ano passado, quando facções menores em todo o país, parte delas alinhada ao Comando Vermelho, lançaram uma ofensiva contra a expansão do PCC.
O nome da facção está em pichações em muros no Jardim Paraíso, bairro com mais homicídios em Joinville. Foi naquela região em que a polícia encontrou a cabeça de Alan dos Santos. Segundo as investigações, era uma provocação do PGC à facção paulista -cinco homens, sendo dois adolescentes, foram identificados como autores do crime.
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No bairro Jardim Paraíso, que concentra alto número de homicídios, muros portam pichação a favor do PCC |
Um ano antes, outra decapitação chocou a cidade: um adolescente de 16 anos foi morto e degolado a machadadas. O vídeo também circulou na rede e a cabeça foi encontrada na mesma região.
"Em geral, quem mata e quem morre tem relação com facções. E quem não tinha, acaba criando, porque hoje fornecemos isso. Se você pega alguém que furtou um carro no centro e manda para um presídio, inevitavelmente vai ter que entrar numa facção. É a vida dele que corre risco. Estamos formando soldados para o crime", diz Lotin.
PRISÕES
Há um total de 1.600 detentos nas duas principais prisões de Joinville, a Penitenciária Industrial, considerada modelo, onde os internos trabalham e estudam, e o Presídio Regional, onde ficam presos provisórios e que padece dos mesmos problemas de outras unidades do país, como superlotação (866 pessoas e 540 vagas), e que chegou a ser interditado no meio do ano pelas más condições.
A direção da penitenciária estima que, dos 1.600 internos no complexo prisional, cerca de 160 sejam ligados ao PCC -e o restante ao PGC.
Estão divididos por galerias dominadas pelas facções, que demandam estratégias para não permitir que os dois grupos se encontrem, como a divisão de celas, de banhos de sol e até de turmas escolares.
Para o juiz João Marcos Buch, que atua na vara de execuções penais, o massacre que deixou mais de 120 mortos em presídios no Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte pode se repetir ali.
"Nós vivemos um período frágil de calmaria, mas é um caldeirão. Uma hora explode", afirma ele, que diz alertar desde 2013 gestores do sistema prisional de que haveria um aumento da violência.
"Se alguém chega na prisão hoje sem roupa, sem ter onde dormir, com dor, febre, um tiro na perna, o Estado não comparece. Mas o mais velho da cela aparece. Daqui a seis meses, quando sair da prisão, vai por fogo em ônibus. Porque quem aparou está cobrando. E ele faz isso com gosto", exemplifica o juiz.
Ele se refere a uma série de ataques a órgãos públicos e ônibus. A onda de violência também atinge a capital, Florianópolis, que em 2017 registrou 156 assassinatos até 1º de dezembro, ante 91 em todo o ano passado.
Policial militar assassinado em Joinville teve morte encomendada por facção
04/12/2017 23:05
JOINVILLE (SC)
THIAGO AMÂNCIO
AVENER PRADO
ENVIADOS ESPECIAIS A JOINVILLE (SC)
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Cemitério Nossa Senhora de Fátima, em Joinville, onde o policial militar Joacir Roberto Vieira foi enterrado |
Luis Roberto completou 16 anos em 28 de agosto, uma segunda-feira. Para presenteá-lo, seu pai, Joacir Roberto Vieira, 43, resolveu lhe comprar um tênis numa loja na zona sul de Joinville (SC), perto de sua casa e da base da Polícia Militar onde trabalha.
Era quase 19h, horário em que o cabo da PM começaria seu turno de trabalho, que se estenderia até as 7h da manhã seguinte. Joacir seria promovido a sargento em janeiro e faltavam seis anos para poder se aposentar. Depois disso, planejava morar com a esposa em Itapema, na praia, a 100 quilômetros dali.
Mas o plano foi interrompido quando dois bandidos acertaram, ainda de fora da loja de sapatos, dois tiros em suas pernas. Joacir chegou a tentar sacar a arma do coldre, sem sucesso. Caiu e tomou mais uma sequência de tiros nas costas. Morreu na hora.
O alvo não era ele, mas a Polícia Militar. O crime foi o resultado de uma "missão" dada a membros da facção criminosa PGC (Primeiro Grupo Catarinense): matar algum agente de segurança pública, segundo um advogado contratado pela família da vítima (o caso corre em segredo de Justiça). "Foi uma afronta da facção ao Estado", resume a delegada regional de Joinville, Tânia Harada. Cinco suspeitos estão presos, e outro morreu num confronto com a polícia.
Nascido em Canoinhas, a 220 quilômetros de Joinville, Joacir vem de família de policiais: seu pai e dois dos seus quatro irmãos seguiram a mesma carreira. Serviu o Exército por cinco anos em Brasília e há 19 anos atuava como PM em Joinville, onde um irmão já trabalhava.
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A manicure Gisele Nazário, 37, luta para reconstruir a vida após a morte do marido, o PM Joacir Roberto Vieira |
O casal morava com outro filho, de seis anos (o mais velho era fruto de outro relacionamento), próximo à base onde Joacir trabalhava como armeiro.
"Ele era muito atuante, foi do policiamento tático, era muito conhecido", conta o colega de profissão Elisandro Lotin. Em 2016, 33% dos policiais assassinados tinham entre 40 e 49 anos, assim como Joacir, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. "O índice de policiais mortos é maior entre os mais velhos, porque eles são conhecidos nas redondezas", explica Lotin.
Depois do crime, Gisele foi morar num apartamento menor com o filho, próximo ao centro da cidade. Só recentemente, quase três meses depois da morte do marido, a mulher conseguiu voltar a trabalhar como manicure: desenvolveu síndrome do pânico e vive a base de medicamentos. "O que a minha vida virou agora? A gente perdeu nossa estrutura, tudo desabou", desabafa.
A criança dorme ainda hoje com uma camiseta que o pai usou na véspera do atentado. "Ficou o cheiro do pai, é o conforto dele", conta. Joacir foi enterrado com uma camiseta do personagem Capitão América por baixo da farda –era visto como o super-herói pelo filho, conta Gisele. "Meu filho cada vez que vai ao cemitério coloca a camiseta do Capitão América. É triste tu ver teu filho olhar para ti com os olhos cheios de lágrima e dizer que o coração dele dói de saudade."
Elucidação de homicídios em Joinville triplicou em dois anos, diz delegada
04/12/2017 23:00
JOINVILLE (SC)
THIAGO AMÂNCIO
AVENER PRADO
ENVIADOS ESPECIAIS A JOINVILLE (SC)
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Ponte do Jardim Paraíso, bairro que concentra alto número de homicídios em Joinville (SC) |
A Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina reconhece que "disputas e desavenças entre integrantes de facções criminosas", motivadas pelo tráfico de drogas, fizeram as estatísticas de mortes dispararem no Estado.
A pasta diz, porém, que "toda a estrutura da segurança pública em Joinville vem desenvolvendo seu trabalho com empenho, dedicação e competência", e destaca que "casos graves e de grande repercussão foram esclarecidos e concluídos, o combate ao tráfico de drogas está sendo forte, as investigações criminais estão mais ágeis, há operações policiais todos os dias, o nível de integração entre as forças é bastante positivo e os resultados visando estabilização já começam a ser observados", diz, em nota.
Segundo a delegada regional de Joinville, Tânia Harada, a criação de uma delegacia de homicídios na cidade, em 2015, fez saltar o índice de elucidação desses crimes de 20% para 65%, "com um aumento considerável no número de prisões".
Como estratégia para reduzir a violência, Harada ressalta a importância da presença ostensiva de policiais civis nas ruas, fiscalizando estabelecimentos comerciais e o cumprimento de penas de pessoas em regime domiciliar.
A Prefeitura de Joinville diz que implantou na cidade uma guarda municipal em 2015, que teve "como resultado a redução em 30% dos conflitos comuns em espaços públicos como brigas, pequenos furtos, uso e tráfico de drogas em frente a escolas, praças, parques e Estação Rodoviária".
Cita ainda a criação de um Observatório de Segurança Púlbica, em abril, ligado a uma universidade local, de "cunho científico e estrutura autônoma", cujos resultados ajudam a pautar o planejamento de políticas públicas.
Fonte: Folha de São Paulo