Entre os dias 4 de outubro de 2017 e 31 de janeiro de 2018, a Defensoria Pública da União recebeu mais de 8,5 mil relatos de presos sobre as condições desumanas a que estão submetidos.
Por Pedro Canário-Conjur
9 de fevereiro de 2018, 17h56
Defensor nacional de direitos humanos pede que Cármen implante no CNJ sistema informatizado para tratar liberdade como regra, como manda Constituição |
Tudo indica que tenha sido uma resposta à decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, de mandar a DPU identificar os presos que pretende representar por meio de um Habeas Corpus coletivo, negando a liminar.
De todas essas correspondências, 2,3 mil foram enviadas à ministra Cármen Lúcia, presidente do Conselho Nacional de Justiça, para que transforme os relatos em alguma forma de política criminal. Especialmente depois que o Supremo suspendeu trechos do decreto de indulto presidencial por “violação à efetividade mínima do Direito Penal e aos deveres de proteção do Estado quanto à segurança, justiça, probidade administrativa e direitos fundamentais dos cidadãos”, como escreveu o ministro Luís Roberto Barroso, relator de ação de inconstitucionalidade contra o indulto, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República.
As cartas foram digitalizadas e protocoladas no CNJ pelo defensor nacional de direitos humanos da DPU, Anginaldo Oliveira Vieira. Ele conta que o Habeas Corpus coletivo foi um catalisador “porque demonstrou que alguém está na luta pelos direitos dos presos”. Mas o grosso das correspondências chegou em janeiro deste ano, depois que a ministra Cármen, no plantão, suspendeu o indulto.
Para a presidente do STF, o indulto de 2017, assinado pelo presidente Michel Temer, é inconstitucional por desvio de finalidade. Ela concordou com o pedido da PGR, de que o indulto foi decretado para beneficiar réus por corrupção, especialmente por também atingir as penas de multa. E considerou que “a suspensão do decreto não importa em qualquer dano de difícil reparação pois os seus possíveis beneficiários cumprem pena imposta mediante processo penal regular”.
Não é o que mostram as mais de 2 mil cartas de presos enviadas à ministra pela DPU. Uma delas é de um reeducando que está numa cela com oito camas e 17 pessoas. A alimentação, diz ele, é precária: de manhã, dois dedos de café para um de leite; no almoço, “a comida, se tirar do Tupperware, cabe em uma caneca padrão do sistema prisional”. “A covardia que fazem: nos vendem a televisão e no dia da vistoria [blitz] alegam que foi mexida e ainda aplicam um gancho de 90 dias sem TV”.
Outro deles afirma que diversos presos sofrem agressões rotineiras. Segundo ele, os internos da unidade onde está são “oprimidos diariamente” pelo diretor do presídio, que aplica castigos sem motivo e, se alguém reclama, alega falta disciplinar na ficha dos presos. “No castigo, ele não leva no hospital, fala que não tem escolta policial, mas na hora de soltar os cachorros, ele solta na hora”, afirma o interno.
Solução urgente
Mais de oito mil presos escrevem à DPU para reclamar das condições a que estão submetidos nas prisões. |
Anginaldo Vieira conta que a Defensoria costuma receber cartas de presos pedindo ajuda jurídica, mas é a primeira vez que recebem tantas. “São cem cartas por dia”, calcula. “O que eles pedem é indulto. Vai chegando essa época do ano e eles sabem que vai ser editado um decreto, então pedem”, conta.
“O indulto tem que ser visto como um direito do preso. Dois anos preso no Brasil é como se fossem dez. A redução do prazo de encarceramento é uma forma de compensar o preso que cometeu crime sem violência ou grave ameaça. Na Noruega, o indulto exige o cumprimento de metade da pena, mas lá ninguém vai preso pra dormir de pé, com rato, com barata, pra passar fome, pegar tuberculose e ainda correr o risco de ser assassinado”, protesta o defensor, em entrevista à ConJur.
Junto com as cartas, Anginaldo Vieira também enviou um ofício à ministra Cármen. No documento, ele explica à presidente do Supremo que os presos submetidos a condições desumanas estão sob a responsabilidade do Estado. Ainda que a execução penal seja de responsabilidade do Executivo, foi o Judiciário que os colocou lá. “O cidadão tem direito de ser indultado e de ter sua pena extinta, mas ainda continua recluso por falta imputável à administração da Justiça, ou seja, por falha do serviço público”, diz o ofício.
O texto também foi usado pelo defensor para sugerir à ministra Cármen a criação de um sistema informatizado que inverta a lógica da execução. Hoje, um preso fica no cárcere até que a vara de execução autorize a soltura. Antes disso, ela verifica a correção do cálculo da pena, remição, comportamento, laudos psicológicos etc.
Anginaldo propõe que, assim que a sentença condenatória transitar em julgado, o sistema já calcule automaticamente quando o preso será solto, conforme a pena estabelecida. Ao Estado, caberia inserir no cadastro informações que possam atrasar a soltura dentro do prazo.
“Embora não ocorra nenhuma mudança meritória ou alteração do poder decisório dos juízes, a mudança procedimental faz toda a diferença, evitando o encarceramento desnecessário, pois haverá o advento pró-liberdade automático, se nenhum comando em contrário for adotado”, explica Vieira.
Supremo garantista
Até agora, Anginaldo Vieira tem ao lado dele a jurisprudência do Supremo. Em setembro de 2015, o tribunal reconheceu o estado inconstitucional de coisas em que se encontra o sistema carcerário brasileiro. Seguindo o voto do ministro Marco Aurélio, o Plenário determinou à União liberar o dinheiro do Fundo Penitenciário do Ministério da Justiça e oficiou o CNJ a obrigar os estados a implantar as audiências de custódia.
Só as audiências, a obrigação de apresentar presos em flagrante a um juiz dentro de 24 horas, foram implantadas. O Funpen continua represado e usado como superávit primário das contas do governo federal. Enquanto isso, segundo o CNJ, as audiências de custódia soltaram mais de 100 mil pessoas desde 2015. Mesmo assim, o Brasil chegou a 2016 com 726 mil presos, a terceira maior população careceria do mundo — atrás dos Estados Unidos, país com mais pessoas presas no planeta, e da China, cuja população total é de mais de 1,2 bilhão de pessoas, seis vezes a do Brasil.
“É preciso realmente que a gente repense esse modelo e a forma de se cumprir a Constiuição”, votou, em setembro, a ministra Cármen, ao também reconhecer o estado inconstitucional de coisas do sistema prisional. “Lembrei-me do célebre habeas de Sobral Pinto, que pedia que se aplicasse a Lei de Proteção aos Animais às pessoas que estavam sendo torturadas e que não recebiam tratamento sequer igual ao dos animais. Daqui a pouco, aparecerá outro Sobral Pinto que virá aqui para pedir isso, que é o que precisamos vencer e que esse estado de coisas inconstitucional nos faz lembrar”, declarou.
Por causa dessa realidade, o Supremo reconheceu, em fevereiro de 2017, o direito de presos serem indenizados em dinheiro caso sejam submetidos a condições desumanas durante o cumprimento da pena. E estabeleceu a seguinte tese:
Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento”.
Política penal
Repressão abstrata a crimes deve ser discutida no Legislativo, e não na Justiça, diz defensor nacional de direitos humanos da DPU, Anginaldo Oliveira Vieira |
O grande argumento da PGR, acolhido pelo Supremo, contra o indulto é que ele favorece corruptos e quem cometeu crimes contra a administração pública, que causa prejuízos difusos na sociedade. O defensor nacional de direitos humanos, Anginaldo Oliveira Vieira, lamenta o discurso. Para ele, isso tem de ser resolvido no Congresso Nacional, de maneira abstrata, e não na Justiça, que avalia casos concretos e define o destino de pessoas reais.
A fala atinge diretamente a liminar do ministro Barroso que restringiu o indulto de 2017. Na decisão, o ministro disse que levará ao Plenário a proposta de limitar a concessão do indulto a cumpriu o mínimo de um quinto da pena, já que a lei diz que só podem receber liberdade condicional quem tiver cumprido um terço dela.
“A questão do indulto é objetiva. Se certo tipo de crime precisa ser reprimido, aumente-se a pena, mude-se a lei. Mas não se deve fazer isso com o indulto, pois acabamos atingindo pessoas pobres que não têm meios de se defender. Não é só porque alguém cometeu crimes que deixa de ter direitos e devemos deixa de defendê-los. Não estamos tratando apenas do funcionário público de alto escalão”, diz Anginaldo.
Não tem como saber quais foram os crimes cometidos pelos mais de 8 mil presos que mandaram cartas à DPU. O pedido é de ajuda. Mas isso não importa, afirma o defensor. “Não podemos discriminar o crime cometido por quem tem poder e por quem não tem. O Código Penal fala em ‘agente público’, e a maioria dos agentes públicos do Brasil são de baixo escalão, é o guarda de trânsito ou o militar de baixa patente. Não se pode prejudicar réu pobre porque ele cometeu crime também cometido por ricos.”
* Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Conjur