03 junho 2018

DOSSIÊ PCC : PCC usa doleiros e já fatura mais de R$400 milhões

Documentos apreendidos após a morte de líder mostram a expansão dos negócios da facção no Brasil e no mundo















Especial
Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo
03 Junho 2018 | 06h00


Da periferia ao patamar de multinacional do crime


A morte do líder do Primeiro Comando da Capital (PCC) Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, desencadeou uma investigação que descobriu novos segredos da maior facção criminosa do País. Documentos encontrados pela polícia revelaram parte da estrutura montada pelos líderes do PCC para o tráfico internacional de drogas, a lista de seus integrantes em cada região de São Paulo, nos Estados e em cinco países da América do Sul - Colômbia, Paraguai, Bolívia, Peru e Guiana.

 A inteligência policial tem provas da evolução das rendas do grupo e sua ligação com o primeiro cartel de drogas chefiado por um brasileiro: Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho.

Os negócios particulares dos líderes e da própria facção têm um faturamento estimado pela inteligência policial em, no mínimo, R$ 400 milhões por ano. Alguns policiais acreditam que esse número pode chegar a cerca de R$ 800 milhões, o que colocaria o PCC entre as 500 maiores empresas do País.

Seu tamanho dependeria da quantidade de drogas que o cartel liderado por Fuminho e os líderes do PCC conseguem exportar nos Portos de Santos, Itajaí, Rio e Fortaleza. Estimativas conservadoras fixam em 1 tonelada por mês, enquanto analistas policiais consideram que esse número corresponde apenas ao movimento de uma semana.

Gegê do Mangue, maior liderança solta do PCC, foi morto no CE Foto: SAP/Divulgação


Entre as descobertas feitas pela inteligência policial estão remessas da facção para um doleiro da capital paulista. Em 9 de dezembro de 2017, um dos grupos responsáveis pelo tráfico internacional de drogas entregou R$ 1.464.118 ao doleiro. Em 16 de dezembro, foram enviados mais R$ 1.522.374 e no dia 21, R$ 1.105.651. Em duas semanas, a soma chega a mais de R$ 4 milhões. A contabilidade mostra que em uma única vez, em dezembro de 2017, o bando gastou R$ 2,5 mil para comprar malas para entregar o dinheiro.

As remessas continuaram em janeiro deste ano. Segundo as investigações, a facção entregava reais ao doleiro e recebia dólares, por meio do sistema dólar cabo, na Bolívia e no Paraguai, para pagar a produção das drogas - cocaína e maconha. O sistema de lavagem da facção inclui ainda a compra de postos de gasolina (200 deles estão nas mãos de laranjas que trabalham para um bandido conhecido como Flavinho).

Esta não foi a primeira vez que a polícia descobriu um esquema de lavagem de dinheiro da facção. Para o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, o PCC ainda é uma organização de tipo pré-mafiosa, pois lhe falta conhecimento para fazer a lavagem de dinheiro. Essa seria a última barreira que separa o grupo das demais máfias pelo mundo. "Muitas das operações da facção são feitas em dinheiro vivo, guardado em lugares seguros", diz.

Em 2014, a polícia detectou um esquema que envolvia uma transportadora de cargas fantasma que movimentou R$ 100 milhões por meio de duas corretoras de valores, que enviavam o dinheiro do crime organizado para a China e para os Estados Unidos. As contas da transportadora eram movimentadas pela internet. Essa tarefa era executada por meio de sete IPs com base no Paraguai.

Violência e infiltração em todos os setores da sociedade



Mortos

Foi no apartamento de José Adinaldo Moura, o Nado, no Tatuapé, zona leste de São Paulo, que o Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) encontrou os papéis. Nado era o braço direito de Wagner Ferreira da Silva, o Cabelo Duro. Os dois eram acusados de participar no Ceará do assassinato de Gegê do Mangue em fevereiro e acabaram mortos pela facção a mando da cúpula.

Nado morava em um apartamento de cobertura e teria sido executado um dia antes do assassinato de Cabelo Duro, em 22 de fevereiro. No dia 15 de maio, a polícia achou um corpo que seria de Nado. Ele estava enterrado de ponta-cabeça e amarrado em um terreno na região de Americanópolis, zona sul da capital.

Nado e Cabelo Duro trabalhariam para Fuminho, que era apontado como sócio do líder do PCC, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola. Gegê do Mangue, que havia saído da cadeia em 2017, teria descoberto que eles usavam a logística montada pelo PCC para traficar drogas sem pagar à facção.

Gegê começou a cobrar um pedágio de Fuminho e usou o dinheiro para comprar imóveis no Ceará, em vez de entregá-lo para o caixa do grupo. Ao descobrirem o desvio, Gegê teve o destino selado. Fuminho mandou assassiná-lo. A cúpula reagiu e decidiu matar os envolvidos na execução.

Só depois de Fuminho apresentar as provas de que Gegê estava roubando o grupo é que a cúpula decidiu perdoá-lo. Os pontos de varejo de drogas dominados por ele em São Paulo - região da Avenida Presidente Wilson e na Favela de Heliópolis -, que haviam sido tomados pela facção, foram devolvidos recentemente pelo PCC.

Ao descobrirem o desvio, Gegê teve o destino selado. Fuminho mandou assassiná-lo




Sucesso

O sucesso de Fuminho no tráfico atraiu outros bandidos para a atividade. "Grupos de ladrões de carga, de carro-forte e de banco passaram a se juntar para investir no tráfico internacional de drogas", disse o delegado Ruy Ferraz Fontes, diretor do Denarc.

Para conseguir grandes quantidades da droga e enviá-la para a Europa - os Estados Unidos são um mercado cativo dos cartéis mexicanos -, os bandidos aproveitam a logística do PCC. Os ladrões se unem em grupos e compram a cocaína para montar um carregamento e embarcá-la em contêiner. Esse movimento começou a tirar o espaço no Brasil da máfia nigeriana no tráfico.

Em 18 de abril, policiais civis que vigiavam o galpão no Guarujá surpreenderam uma dessas partidas. A droga chegou em picape S-10. Uma hora depois, o portão se abriu e saíram a picape, um Fiorino e um caminhão que transportaria um contêiner. Quando o grupo foi abordado pelos policiais, a escolta do caminhão reagiu a tiros de fuzil, ferindo um investigador. Sete acusados foram presos e 213 quilos de cocaína apreendidos - outros três bandidos fugiram, deixando para trás um fuzil e uma pistola calibre 45.

Em 4 anos, facção cresceu 6 vezes de tamanho fora de SP

Maior crescimento aconteceu nos Estados das Regiões Norte e Nordeste; grupo buscaria uma 'renda monopolista'

Em quatro anos, o total de integrantes do PCC mapeados pelo censo da organização em outros Estados foi multiplicado por seis. Além de São Paulo, onde o aumento foi quase de 100%, os Estados que concentram o maior número de bandidos inscritos na facção - os chamados batizados - são Paraná e Ceará. Cada um tem mais de 2 mil soldados, número equivalente ao total de integrantes que existia fora do Estado de São Paulo em 2012.

Os números mostram que o crescimento da facção é contínuo. Em 2014, ela tinha 3.261 integrantes em outros Estados; em 2017, já eram 18.538 e, no País, o total chegava a 29.460. De lá para cá, mais 2 mil bandidos se filiaram fora de São Paulo ao grupo, que tem agora - dados de março - 20.448 homens e mulheres em outros Estados. O total no País já ultrapassa a casa dos 30 mil.

Além de São Paulo, onde o aumento foi de quase 100%, os Estados que concentram o maior número de bandidos
 inscritos na facção - os chamados batizados - são Paraná e Ceará. Foto: REUTERS/Josemar Goncalves




Os documentos da inteligência do Ministério Público de São Paulo mostram ainda que no Estado, apesar da repressão sofrida, o grupo passou de 6 mil integrantes em 2012 para 10.922 em 2018. A precisão dos dados é possível por causa da apreensão dos registros da chamada cebola, a mensalidade paga à facção pelos seus integrantes. Ela é gratuita para quem está preso, mas criminoso que está em liberdade deve contribuir com R$ 950.

Rendas

De acordo com o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), o PCC estabeleceu metas para a expansão interestadual. Para tanto, a facção está promovendo a estruturação do chamado "progresso", que são as fontes de renda da organização: a caixinha, a rifa e o tráfico.

É como se a organização desse uma espécie de curso para os novatos que querem entrar no negócio. Como se fosse uma franquia, o grupo fornece ainda droga em consignação para quem vai começar e faz uma pregação sobre sua visão de mundo. É o que Gakiya chama de "fortalecimento da doutrina e da ideologia do crime".

Nessa expansão para outros Estados, o PCC enfrentou a resistência de organizações locais, como a Família do Norte (FDN) e o Comando Vermelho, provocando uma guerra no submundo e nas prisões, com conflitos intensos em 11 Estados e moderados, segundo o MPE, em outros seis. Somente no Piauí, em Pernambuco, Alagoas, Goiás, Distrito Federal, Paraná e na Região Sudeste não foram registrados conflitos entre as três facções.

No Estado de São Paulo, a organização conta com 1.589 pessoas em liberdade pagando mensalidade. A zona leste é a região que concentra o maior número de membros (500), seguida pela zona sul, com 193. Outros 9.333 integrantes estão no sistema prisional.

Para tentar conter a facção, o governo paulista instalou bloqueadores de telefonia celular em 23 penitenciárias. "A facção funciona como uma rede. Ela não é vertical", afirma o pesquisador Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).

Adicionar legenda "A facção funciona como uma rede. Ela não é vertical", afirma o pesquisador Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP)





Monopólio

Para Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, o crime organizado, ao contrário do crime comum, não busca uma transferência pontual de renda (o roubo, o estelionato, o furto etc). "O que é típico dessa atividade é a busca de renda monopolista em nichos e espaços. Por isso, o crime organizado é tão violento, pois o seu primeiro desafio é atingir o monopólio nas áreas em que atua."

Para Piquet, a expansão do PCC lança um desafio aos estudiosos, pois essas organizações criminosas só funcionam quando têm uma atuação local, em um pequeno nicho e território, e ficam "fragilizadas à infiltração policial e à detecção quando tentam integração vertical (forma de organização empresarial com uma hierarquia em que cada setor da organização tem uma função distinta), expandindo suas áreas de atuação e negócios". "Isso ocorreu com Pablo Escobar, na Colômbia." No caso do PCC, o grupo expandiu-se para todo o País sem - até agora - se fragilizar.

1º Brasileiro chefe de um cartel de drogas

Da Bolívia, Fuminho domina a produção e envia drogas e armas para o PCC

Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, vive há mais de dez anos na Bolívia. Estabeleceu-se na região de Santa Cruz de la Sierra. "Ele organizou um cartel, o primeiro chefiado por um brasileiro", disse um dos policiais envolvidos na investigação de seu grupo. Fuminho domina a produção da droga. Da Bolívia, ele envia drogas e armas para o PCC. Usa contêineres nos Portos de Santos, Itajaí e Rio e veleiros no Nordeste para enviar cocaína para a África e para a Europa.

Aliou-se à 'Ndrangheta, a máfia calabresa, para abastecer a Europa. Em 2016, um veleiro enviado da Bahia por Fuminho foi apreendido pela Diretoria Antimáfia da Itália ao se aproximar de Gioia Tauro, o gigantesco porto de contêineres da Calábria, no sul da Itália. Arrastava 500 quilos de cocaína em uma rede embaixo do casco.

Fuminho já foi comparado ao traficante Pablo Escobar. Foto: Polícia Civil


"Se você revistasse o barco não encontraria nada", contou o policial. De acordo com ele, a máfia calabresa é a principal compradora da droga de Fuminho. "Um quilo de cocaína em São Paulo vale US$ 5 mil. Na Europa, vale até US$ 40 mil. Quase metade do lucro fica com os integrantes da facção." Além de atrair a atenção da política italiana, Fuminho e o líder máximo do PCC, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, despertaram interesse da agência antidroga americana, Drug Enforcement Administration (DEA).

Agentes da DEA tentaram prender Fuminho pela primeira vez em 2014, quando o chefão foi localizado nos Estados Unidos por meio de escutas no telefone de Wilson José Lima de Oliveira, o Neno, que cuidava da arrecadação da mensalidade dos filiados à facção. Pouco antes de os agentes americanos chegarem à mansão de Fuminho, os dois embarcaram em um avião e foram para o Panamá.

De lá, Fuminho voltou à Bolívia e Neno veio ao Brasil, onde seria preso três anos depois na Grande São Paulo. Para a polícia, além de mandar matar os líderes do PCC Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca, em fevereiro, no Ceará, Fuminho é o mandante do assassinato de Eduardo Ferreira da Silva, também em fevereiro, no Tatuapé, zona leste. Silva estava em uma Mercedes quando foi cercado por três pistoleiros encapuzados. Ele era o responsável pela escolta da mulher de Marcola e era suspeito de desviar dinheiro da facção.

Da Bolivia, Fuminho domina a produção e envia drogas e armas para o PCC



Bancos 

Fuminho começou no mundo do crime como ladrão de banco. E atuou nos anos 1990 ao lado de Marcola. Nunca entrou para a facção e se transformou no mais importante aliado do grupo. "Vou repetir o que eu já disse: ele está virando o Pablo Escobar brasileiro", disse um outro delegado. Para a polícia paulista não há dúvida: Fuminho é o maior traficante do País.


Grupo vende 45 mil números de rifa e cobra mensalidade

Bando tem setores jurídico, de transportes e de compliance, segundo MP; contribuição de 'associado' chega a R$ 950 mensais


Além de arrecadar com o tráfico local e internacional de drogas, os integrantes do PCC contam com R$ 1,9 milhão com a chamada cebola (a mensalidade paga pelos integrantes da facção) e vendem 45 mil números de rifa a cada dois meses no sistema prisional. O valor de cada número é de R$ 40 (R$ 1,8 mi/mês). Já a contribuição de "associados" é de R$ 950 por mês, mais do que o dobro do valor pago por um sócio do Clube Pinheiros, na zona oeste de São Paulo (R$ 420), por exemplo.

Cada um desses setores é cuidado por um representante da cúpula da facção, a Sintonia Final Geral, dirigida por Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola. A facção tem ainda departamento jurídico - a sintonia dos gravatas -; departamento de transportes - a sintonia dos pés de borracha; e outros setores, como o dos ônibus (para levar as visitas dos presos). A organização conta até com uma área que exerce a função de compliance: a chamada "disciplina", que cuida das "boas práticas baseadas na ideologia da facção".

Bando tem setores jurídico, de transportes e de compliance. Cada um deles é cuidado por um representante da
cúpula da facção, a Sintonia Final Geral, dirigida por Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola.
Foto: Paulo Liebert/Estadão





Propostas

Para combater o crime organizado, o Ministério Público Estadual de São Paulo defende os investimentos na inteligência policial, a fim de prever tendências da criminalidade e identificar desdobramentos do crime. Essa seria a única forma de identificar líderes e seus auxiliares mais importantes.

Os promotores do Gaeco também consideram essencial aprofundar o monitoramento da movimentação da organização para identificar sua rotina. Para os promotores, a ação controlada, a captação ambiental de conversas, a intercepção telefônica e telemática, a colaboração premiada e a infiltração e a vigilância de campo são outros instrumentos importantes para combater o grupo.

Por fim, eles defendem quatro medidas que deviam ser adotadas contra o Primeiro Comando da Capital: o isolamento dos principais líderes no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), a transferência dos líderes para o Sistema Penitenciário Federal, o aumento de prazo de internação do RDD de 6 meses para 3 anos e a criação de um regime intermediário de cumprimento de pena a ser reservado aos presos ligados a facções criminosas no País.

Armas, importante fonte de rendas para a organização criminosa































Fonte: Estadão