25 setembro 2019

ENTREVISTA Drauzio Varella: 'Os médicos não gostam de trabalhar em cadeias'

Autor de 'Estação Carandiru' alerta que salários são baixos e que os profissionais têm medo.







Ana Letícia Leão
24/09/2019 - 04:30

Drauzio Varella conta como é trabalhar dentro de um presídio
Foto: Reprodução




SÃO PAULO - O problema da superlotação dos presídios brasileiros divide espaço com dramas relacionados à falta de médicos nas cadeias do país. É o que afirma o oncologista Drauzio Varella, reconhecido por seu trabalho com presos desde a época em que atuou como médico no Carandiru.

Para ele, um dos maiores gargalos nas penitenciárias é o desinteresse dos profissionais de saúde em atender a população carcerária: "Primeiro, os salários são baixos, nada atrativos. Segundo, ninguém quer trabalhar no meio de presos. As pessoas têm medo, receio de serem usadas como reféns num levante qualquer".

Drauzio, no entanto, trabalha na contramão dos demais profissionais. Atualmente, atende voluntariamente mulheres encarceradas em São Paulo. "Esse medo que o médico tem de entrar nesse ambiente é infundado porque os presos nunca vão agredir alguém que está lá para cuidar deles", diz.

Durante entrevista ao GLOBO, Drauzio também fez críticas ao sistema de saúde penitenciário. "Se já não é fácil organizar a saúde para quem está em liberdade, imagina nessas condições, quando há celas que têm 30 pessoas com problemas sérios de disseminação de doenças infecciosas?", questiona.

Como é a sua história de trabalho nos presídios, principalmente no Carandiru?


Eu cheguei ao Carandiru em 1989 para fazer um estudo sobre HIV. Testamos 1.492 presos e encontramos 17,3% com HIV positivo. Depois, testamos os resultados contra vírus da hepatite C. Havia 60% positivos porque naquela época se usava muita droga na veia. A droga da moda era cocaína injetável. Íamos uma vez por semana para atender os doentes e eu fazia palestras de esclarecimento sobre a Aids,  de 1989 até 2002, quando a cadeia foi desativada.

Depois, passei a fazer o atendimento na penitenciária do estado de São Paulo, que fica atrás do Carandiru. Fiquei três anos porque ela acabou sendo desativada para ser transformada em cadeia feminina. Em 2006, quando houve aquela coisa de o PCC colocar fogo na cidade, o pessoal me pediu pra ir pra feminina porque estava muito complicada a situação lá. Não tinha médico nenhum.

Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida na época como Carandiru


O que o senhor viu no Carandiru?


As cadeias mudam com o tempo. O Carandiru é muito diferente das cadeias de hoje, não há nenhuma comparação. A situação era muito dramática porque havia entre 7 e 8 mil homens, às vezes mais. As celas do pavilhão quatro, por exemplo, eram individuais, mas nos pavilhões cinco e oito as celas eram coletivas. Tinha muito problema de saúde, especialmente problemas de pele. Estávamos em uma fase em que a Aids se disseminava fortemente na periferia das cidades através da cocaína injetável, e eu peguei o impacto inteiro da epidemia lá.

São Paulo era o epicentro da epidemia brasileira. O Carandiru era o lugar para onde convergiam essas pessoas. Desenvolviam a doença na prisão, ou às vezes já vinham doentes da rua mesmo em fase final de evolução. Os médicos daquela época não conheciam a doença. Tinha uma enfermaria de Aids que eu coordenava, na medida do possível porque o trabalho sempre foi voluntário. Uma vez por semana eu ia ao Carandiru.

“Quando temos um caso de risco de morte, precisamos levar para um pronto-atendimento. Como leva? Precisa de procedimento de escolta, pois por lei não pode levar um preso para fora sem escolta. A gente leva muitas horas até conseguir uma escolta”


DRAUZIO VARELLA
Médico

Médicos não querem trabalhar no CDPs( Estes dois  acima recém inaugurado na cidade de Pacaembu)
Imagem Governo de São Paulo



O senhor diz que muito mudou de lá para cá. Seria em relação à saúde? Ao tratamento de presos?


Acho que há vários fatores. O massacre foi um divisor de águas, porque a partir dele o estado perdeu o controle da cadeia. Havia várias facções, mas os funcionários eram muito hábeis em não deixar nenhuma facção sobrepujar as outras, a estabelecer o controle geral. E, depois do massacre, o estado perdeu o controle completamente. Começaram a surgir as facções que ganharam hegemonia do controle do sistema penitenciário.

Do ponto de vista da saúde, não houve muita diferença porque sempre foi muito difícil. O estado nunca conseguiu organizar o sistema de saúde. Primeiro, porque não é fácil, especialmente nessas cadeias superlotadas. Se já não é fácil organizar a saúde fora, de quem está em liberdade, imagina nessas condições, quando há celas que têm 20, 30 pessoas com problemas sérios de disseminação de doenças infecciosas.

E não tem médicos, simplesmente porque eles não gostam de trabalhar em cadeia. Não querem ter esse tipo de trabalho. Nós temos vários CDPs (Centro de Detenção Provisória) aqui em São Paulo e não tem médico nenhum. É zero. Imagina pelo Brasil afora? Quando temos um caso agudo, de alguém passando muito mal ou correndo risco de morte, precisamos levar para um pronto-atendimento fora da cadeia.

Como leva? Precisa de procedimento de escolta, pois por lei não pode levar um preso para fora da cadeia sem escolta. A gente leva muitas horas até conseguir uma escolta. É sempre precária. Sempre tivemos dificuldade em organizar o sistema de saúde dentro das cadeias. Primeiro pela falta de médicos, porque abre-se concurso e ninguém comparece. Segundo pela dificuldade mesmo de transporte dos doentes para hospitais especializados.

CDPs que o estado de São Paulo constrói atualmente e que os médicos não querem trabalhar
Acima CDP de Gália que o estado quer passar para as PPPs



E só fazem o transporte em caso de vida ou morte?


Não, às vezes conseguem organizar, quando é possível planejar. Se há tempo, conseguimos levar o doente para fazer um exame e ser atendido, mas é muito difícil. Se eu peço um exame na quarta-feira, ele só vai fazer na segunda. Agenda dentro da cadeia, autoriza o transporte, e chega na hora não tem escolta. Perde tudo. Até agendar de novo começa todo o processo. A cadeia é uma demonstração mais clara de que a ênfase na saúde tem que ser na atenção primária.

Tem de evitar que as pessoas fiquem doentes. Se ficarem doentes, evitar que elas fiquem gravemente enfermas. Eu atendo na penitenciária feminina e resolvo 95% dos casos porque organizo, vejo uma hipertensão ou diabetes, problema de pele, ou um simples problema ginecológico que nem precisa passar por médico, resolve-se na atenção primária.

Fica um pequeno número de casos que são mais complexos para serem encaminhadas a hospitais. O problema é que não conseguem organizar o serviço médico dentro da cadeia por causa das dificuldades já citadas.

Quais são as doenças mais frequentes nos presídios?


No estado de São Paulo, as doenças das mulheres são mais simples. Geralmente, quando elas são presas, ficam sozinhas, completamente abandonadas pela família, pelo marido, namorado, ou por quem quer que seja. É quase uma regra.

A dieta é baseada em carboidratos. É uma comida cansativa. Tem as “quentinhas”, que elas acabam enjoando. E o que fazem, então? Tomam grande quantidade de refrigerante, ninguém bebe água ou suco. Acabam comendo biscoitos e chocolates. São sempre alimentos altamente calóricos.

Elas engordam e ficam sedentárias. 60% das mulheres na cadeia feminina trabalham, mas é um trabalho sedentário. E aí vem o pacote da obesidade, que é pressão alta, diabetes, problemas articulares, o joelho que dói porque está muito pesada. Dores na coluna quase todas têm, e cefaleia também é muito frequente.

“Nas cadeias masculinas há muitos problemas de pele, especialmente por causa das celas muito apinhadas de gente. Em geral, têm no mínimo o dobro de pessoas que caberiam na cela”


DRAUZIO VARELLA
Médico


Cena das mortes ocorridas na Casa de Detenção, no dia 02 de outubro de 1992, após a intervenção da Policia Militar, 
este ocorrido veio a ser chamado como o "Massacre do Carandiru" pela imprensa


Nas penitenciárias masculinas, o perfil da doença é diferente?


É muito diferente. Nas cadeias masculinas há muitos problemas de pele, especialmente por causa das celas muito apinhadas de gente. Em geral, têm no mínimo o dobro de pessoas que caberiam na cela. E há problemas pulmonares com frequência porque ficam uns em cima dos outros.

O preso com pneumonia está respirando encostado nos companheiros. Tuberculose, por exemplo, é terrível. Perdi vários doentes com tuberculose, especialmente porque muitos tinham Aids também. No Carandiru, tivemos uma epidemia de tuberculose. Tivemos um grande número de tuberculose resistente, que é uma tuberculose muito perigosa porque é transmitida da mesma forma e não consegue-se trata-la com medicamentos de rotina.

É possível definir as doenças que mais matam dentro dos presídios?


No presídio feminino, posso dizer com segurança que são as doenças degenerativas. É gente que enfarta e que tem acidente vascular cerebral. São doenças relacionadas à hipertensão arterial, obesidade e diabetes. Esses casos acontecem, em geral, em mulheres que têm acima de 50. Em cadeias masculinas, são mais as doenças infecciosas, embora haja entre os mais velhos doenças degenerativas.

A presença de médicos nos presídios brasileiros é um impasse, como o senhor mesmo disse. O que ocorre?


Primeiro, os salários são baixos, não são atrativos. Segundo, ninguém quer trabalhar no meio de preso. As pessoas não querem, têm medo, têm medo de serem sequestradas, de serem usadas como reféns num levante qualquer. Essas pessoas fantasiam muito, acham que é uma coisa muito perigosa, que podem ser sequestradas ou mortas. Isso é fantasia, não acontece jamais.

Nesses 30 anos, se eu disser que passei algum perigo é mentira minha. Entro na cadeia e fico totalmente sossegado, tenho mais medo na rua. Na cadeia, sei que não vai acontecer. Esse medo que o médico tem de entrar nesse ambiente é infundado porque os presos nunca vão agredir alguém que está lá para cuidar da saúde deles. Mesmo que um tenha essa ideia maluca, ele não faz porque fica com medo dos companheiros.

Liderada pelo coronel Ubiratan Guimarães, a intercenção tinha como justificativa acalmar
a rebelião no local. A promotoria do julgamento do coronel Ubiratan classificou a intervenção
como sendo "desastrosa e mal-preparada"


Como é o acesso a medicamentos dentro dos presídios?


A gente luta com os mesmos problemas de todo mundo que depende das compras do estado. Teoricamente, tem uma cesta básica de medicamentos, os mais comuns. E o certo é fazer isso mesmo, pois não tem que tem que ter medicamentos sofisticados em uma farmácia esperando que um dia alguém precise. Quando surge um caso especial, o estado tem mecanismos e pode efetuar a compra do medicamento especificamente para aquele caso.

Tem um princípio geral da organização que está certo. O problema é que às vezes tem falta dos medicamentos inclusive dessa cesta básica. Se falta dipirona, um medicamento baratíssimo, não deveria faltar. No estado não é assim: se falta, corre na farmácia e compra. Tem que ter licitação. O esquema é muito complicado. Tem que ser muito bem organizado para funcionar, e é essa organização que falta.

“Há estudos que mostram uma incidência altíssima de depressão, de pânico e de vários transtornos psiquiátricos ligados à ansiedade e ações suicidas. Na penitenciária feminina, onde estou há 13 anos, ao menos meia dúzia de meninas se suicidaram”


DRAUZIO VARELLA
Médico


Inaugurada na década de 1920 e sua construção é do engenheiro-arquiteto Samuel das Neves, chegou a abrigar
mais de oito mil presos, sendo considerado à época o maior presídio da América Latina.
  Foi desativada e parcialmente demolido em 2002



De que forma a superlotação e a situação precária dos presídios afetam a saúde física e mental dos presos?


A saúde mental é afetada diretamente. Você está andando na rua, liberdade total, faz o que quer, pega ônibus, metrô, vai passear, anda cinco quilômetros a pé, e de repente está trancado em uma cela? É um impacto muito grande. Há estudos que mostram uma incidência altíssima de depressão, de síndrome do pânico e de vários transtornos psiquiátricos ligados à ansiedade e ações suicidas.

Na penitenciária feminina, onde estou há 13 anos, ao menos meia dúzia de meninas se suicidaram dentro da cadeia, e não há uma estrutura psiquiátrica para poder dar esse atendimento. Temos um psiquiatra para 2.200 mulheres. Como é possível uma coisa dessa? E os transtornos psiquiátricos nessa população tem uma prevalência maior do que na população geral, porque você lida com todo tipo de gente ali.

Como deveria ser feito esse acompanhamento psicológico? Principalmente tendo em vista que um dia essas pessoas voltarão a ter liberdade?


A sociedade não se interessa por esse aspecto, é muito obtusa nesse tipo de raciocínio. Querem que você pegue uma pessoa que está cometendo um crime e ponha na cadeia. O que vai ser feito lá ninguém está interessado. Nós vimos um candidato à presidência da República dizer “se não tiver lugar, eu empilho”. Vai empilhar para sempre? Prisão perpétua para todos? Vão ficar lá empilhados definitivamente? Eles saem, voltam para as ruas e esse é o problema todo.

No Cadeião de Pinheiros, cabem 15 deitados, mas nenhuma cela tem menos do que 30. Então chega um menino de 19 anos, bobão, e o lugar cheio daqueles homens. Ele acha que vai morrer naquele lugar. O cara que diz que não tem medo numa situação dessas é mentiroso, todo mundo fica com medo. Aparece alguém que apresenta o comando, porque tem um custo de vida na cadeia.

O estado não te dá sabonete, toalha, cueca, tênis. Você passa a ter tudo isso garantido pelo grupo. Sua família passa a receber uma cesta básica mensal. Se está preso no interior, pode usar um dos ônibus que eles fretam disfarçadamente para levar a família para visitar, pois as passagens custam R$ 300 e nenhuma família pode cobrir essas despesas. Eles passam a fazer parte de um grupo e passam a contar com a proteção desse grupo. Mas aí venderam a alma para o diabo.

“É lógico, ele volta para a rua. E quando volta, agrava o problema. Ele chegou bobinho na cadeia, ladrãozinho, sem experiência nenhuma. E sai mais esperto, com conexões no mundo do crime”


DRAUZIO VARELLA
Médico

Resquícios da "muralha" da Casa de Detenção (Carandiru) foram transformados em passarelas cercadas
 de arborização no local que atualmente é chamado de  Parque da Juventude em São Paulo




A não existência de uma situação que garanta integridade e recuperação dos presos faz com que tudo seja agravado?


É lógico, ele volta para a rua. E quando volta, agrava o problema. Ele chegou bobinho na cadeia, ladrãozinho, sem experiência nenhuma. E sai mais esperto, com conexões no mundo do crime. Saem com condição de galgar na hierarquia do tráfico, por exemplo. Nós não sabemos fazer diferente. Sabemos prender.

Eu também não sei qual a solução. Sei que essa solução é a mesma da época medieval. Você prende, mas a cadeia não reduz a violência urbana.  Quando cheguei no Carandiru, em 1989, havia no Brasil 90 mil presos.

Grande parte das cidades era tranquilíssima. Hoje, nós temos cerca de 720 mil presos, o que quer dizer que hoje prendemos oito vezes mais. Essa coisa da impunidade, de que o Brasil não prende, não é verdade. E nesses 30 anos em que prendemos oito vezes mais melhorou a segurança nas cidade brasileiras? Só piorou.

A conclusão imediata é que vamos prender quem está cometendo um crime, mas não vamos ter a ilusão de que com isso a gente vá conseguir ter segurança andando nas ruas, justamente porque quando saem voltam para o crime. As nossas cadeias não oferecem uma oportunidade de socialização. Pegam o cara, jogam lá dentro e tá acabado. Não tem uma possibilidade de mudança de vida.

Não é uma situação resolutiva...


Não resolve e não tem perspectiva de solução. Não dá para ter um país com essa desigualdade social e querer andar em paz nas ruas. É ilusão. Com essa meninada na periferia das cidades brasileira, sem nenhuma perspectiva, chance ou futuro pela frente. Não dá. O que você quer que aconteça?

Como é a situação nas solitárias, em relação a riscos para a saúde dos presos?


Acho que teve uma evolução, está um pouco melhor. Eu peguei uma época em que tinham celas de castigo, onde iam colocando os presos independente de quantos estivessem de castigo.  Se há um número finito de celas e um número crescente de pessoas cometendo delitos dentro da cadeia, aquilo vai lotando de gente.

Antigamente era muito pior, havia mais pessoas e tinha que fazer rodízio para dormir, pois eram 25 pessoas em uma cela. Um terço deitava, dormia e os outros ficavam em pé, encostados uns nos outros. Depois rodava. E só tinha um banheiro dentro da cela. Podiam urinar, mas esvaziar o intestino só duas vezes por semana. A fisiologia tinha que se adaptar ao regime da cadeia.

Imagina passar dezesseis horas do dia em pé sem fazer barulho porque os outros estavam dormindo? Coisa medieval. O cara ficava trancado no escuro 10, 30 dias. Você vai causando nas pessoas os piores sentimentos, não traz nada de bom que porventura ela tenha. Castiga, castiga, castiga e depois vai ter que conviver com isso nas ruas.

O massacre causou indignação em detentos de outras penitenciárias, os quais supostamente decidiram formar
 o Primeiro Comando da Capital (PCC) no ano seguinte ao do evento



O senhor falou bastante sobre a solidão nos presídios femininos, que as mulheres recebem poucas visitas, são abandonadas. O que acontece?


A diferença é brutal. No Cadeião de Pinheiros, sexta-feira à tarde, já tem aquela fila de mulheres que levam barracas, ficam esperando para entrarem cedo no pátio. Um homem preso tem sempre uma mulher que vai visitar, seja a esposa, a namorada, o vizinho, a prima, a tia, a irmã, a mãe. A mulher vai para a cadeia e...esquece. Ninguém vai visitar, são abandonadas.

Muitas vezes, sou obrigado a perguntar se elas recebem visita porque quero saber se poderiam comprar um remédio fora, um remédio que esteja faltando. De dez, sete não recebem visitas. Das 2.200 mulheres oitenta recebem visitas íntimas. E essas mulheres tinham maridos e namorados na rua. Oitenta é ninguém, praticamente.

É uma solidão total e provoca modificações no comportamento, adaptativas para essa situação. É uma pessoa na rua que tinha uma vida social e de repente é jogada em uma cela e fica sem ter ninguém. Todos se afastam. Quando a mulher vai para a cadeia tem uma pecha moral em cima dela. A sociedade se comporta assim: “Se ela trafica, sabe-se lá o que ela faz além de traficar”. Tem uma conotação sexual envolvida.

Ninguém pergunta para o ladrão como é a vida sexual dele. Já com a mulher, tem sempre essa conotação, é uma manifestação do preconceito da sociedade. Acho que é isso que envergonha as famílias. O cara vai pra cadeia, não ficou sozinho esse tempo todo, sempre foi visto por alguém, e isso facilita o seu retorno para a sociedade.

No caso das mulheres, perde-se os vínculos. Não tem mais amigos, a família se afastou. O homem vai preso e sabe que alguém vai cuidar dos filhos. Uma mulher presa sabe que ninguém vai cuidar como ela, mesmo que ela seja uma mulher de vida complicada e use drogas, ninguém vai sentir aquele amor. Essa mulher está na cadeia com a cabeça pensando nos filhos. É um martírio.

E quanto o senhor acha que a lei de assistência médica está se distanciando da lei de execuções penais?


Está muito distante. Nem sei se pode se distanciar mais. Não consegue-se organizar um sistema de saúde dentro da cadeia. É uma situação muito difícil, pois não tem enfermagem dentro da cadeia, não tem médicos em número suficiente. Como vai organizar um sistema de saúde sem pessoal? E com todas as dificuldades administrativas que o estado tem é tudo complicado, não tem verba. É muito difícil.

Uma cadeia não tem vocação para ser um centro de saúde. A vocação da cadeia é prender e deixar a pessoa presa. O sistema foi feito para privar a pessoa de liberdade, não feito para dar atendimento médico. Não foi pensado para dar atendimento médico. Como você chama os presos e as presas? O nome oficial é reeducandos, na papelada jurídica. Para não chamar de detento, de presidiário. Mas, na verdade, estamos reeducando quem nesse sistema? É até irônico. 
(Com Fernanda Pontes)





Fonte: O GLOBO
Imagens auxiliares: UOL/ESTADÃO