11 fevereiro 2020

Remição só com trabalho, assim é moleza: Governo Doria censura lista de livros de projeto em presídios de São Paulo

Obras de García Márquez e Camus estavam no pacote; governo diz que não há vetos.



Rogério Gentile
Guilherme Seto
11.fev.2020 
O  governador de São Paulo, João Doria (PSDB), durante evento em novembro de 2019
Imagem|: Zanone Fraissat - 11.nov.2019/Folhapress







SÃO PAULO - O governo João Doria (PSDB-SP) vetou uma lista de livros de projeto de estimulo à leitura que funcionava em penitenciárias do estado de São Paulo. Na relação, havia obras de autores consagrados como o colombiano Gabriel García Márquez, o franco-argelino Albert Camus, o cubano Leonardo Padura e a norte-americana Harper Lee, entre outros.

Procurado pela Folha, o governo do estado diz que não houve censura ou veto e que não faz juízo de valor dos livros escolhidos pelo projeto.

O programa Remição em Rede, uma parceria do governo com a empresa Jnana Consultoria, o grupo Mulheres do Brasil e as editoras Record, Planeta, Todavia e Boitempo, implementou clubes de leitura em dez penitenciárias na gestão Márcio França (PSB). Na primeira fase do projeto, de setembro de 2018 a agosto de 2019, houve participação de 200 presos.

Além de estimular a leitura, o programa contribuiu para a chamada remição da pena, que consiste na possibilidade de o presidiário abreviar o tempo de cumprimento de sua pena por meio do estudo.

Cada livro lido pode diminuir a pena em quatro dias. O preso pode ler 12 livros por ano e conseguir com isso até 48 dias de remição da pena. Para isso, ele também precisa escrever uma resenha, que é encaminhada ao juiz regional para que seja efetivada a diminuição da pena.

Em julho de 2019, o governo do estado renovou o programa Remição em Rede por mais 12 meses. O objetivo era ampliar o alcance para 400 presos, incluindo mais dez presídios.

No mês seguinte, as quatro editoras participantes doaram 240 exemplares de 12 títulos, que seriam acrescentados à biblioteca circulante já existente.
O escritor Garbriel Garcia Márquez um dos censurados
Imagem Nicolás Tavira - 29.set.2013/AFP

Os livros, no entanto, não foram remetidos pela Funap aos presídios. Em dezembro, as organizadoras do projeto solicitaram uma reunião com a fundação, órgão do governo responsável por desenvolver programas sociais nos presídios, para entender o que estava acontecendo.
“Nos avisaram ali que a lista de livros havia sido riscada na íntegra pelo diretor executivo da instituição, o coronel Henrique Pereira de Souza Neto”, afirma a educadora Janine Durand, articuladora do projeto, que tem custo zero para o poder público.

“Depois falaram que o problema estava concentrado em três obras, mas não nos informaram em quais”, afirma. “Essa situação toda nos deixou estupefatos.”

Em razão dos protestos contra a censura, disse Janine, a Funap pediu o envio de uma mensagem de texto com uma justificativa para a escolha de cada um dos livros, o que ocorreu na mesma semana.

A resposta veio no dia 3 de dezembro. Reginaldo Caetano da Silva, superintendente da diretoria de atendimento e promoção humana da Funap, declarou que a justificativa seria encaminhada à chefia de gabinete do instituição.

No texto, o diretor afirma que havia sido indicado “um título que, diante das novas propostas da gestão atual, não atende ao que se espera para a população atendida pela Funap.” Ele não revela no email qual é a obra censurada.

Doze livros formam a lista: “As Cartas Que Não Chegaram", de Maurício Rosencof; “Vá, Coloque Um Vigia”, de Harper Lee; “Crônica De Uma Morte Anunciada”, de Gabriel Garcia Márquez; “O Estrangeiro”, de Albert Camus; ”O Fim de Eddy”, de Édouard Louis; “O Amor Que Sinto Agora”, de Leila Ferreira; “Bonsai”, de Alejandro Zambra; “Caderno de Memórias Coloniais”, de Isabela Figueiredo; “O Quarto Branco”, de Gabriela Aguerre; “Enquanto Os Dentes”, de Carlos Eduardo Pereira; “Cabo de Guerra”, de Ivone Benedetti; e “Paisagem de Outono”, de Leonardo Padura.
O escritor argelino Alberto Camus, o filosófo do absurdo, também censurado - Reprodução
Os livros compõem um amplo leque de temas e pode ser difícil apontar os conteúdos que teriam desagradado a direção do órgão do governo do estado. O romance "Cabo de Guerra", da editora Boitempo, tem como narrador da história um agente de governo infiltrado nos grupos de esquerda durante a ditadura militar brasileira.

Crítica do livro publicada na Folha aponta que "o que mais atordoa [no livro] não é a brutalidade dos militares, mas a passividade do protagonista. A ausência de culpa sobre os atos que levam à morte de diversas pessoas é transtornante".

Padura é um dos mais importantes escritores cubanos de sua geração, para citar outro possível óbice para os avaliadores da Funap. "Paisagem de Outono", da Boitempo, faz parte da tetralogia "Estações Havana", na qual as investigações criminais do protagonista Mario Conde são utilizadas por Padura para desvelar sua visão sobre a sociedade de Cuba.

"O Fim de Eddy", da editora Tusquets, é o relato de um processo de formação "marcado pela descoberta sofrida da homossexualidade num ambiente social asfixiante, no qual a fome e a miséria moldavam o cotidiano das pessoas", segundo análise publicada na Folha.

Marisa Cesar, CEO do Grupo Mulheres do Brasil, que integra o projeto, afirma “que a leitura ajuda no desenvolvimento e no despertar do estudo”. Ela lamenta a censura.

Criado em 2013 por 40 mulheres de diferentes segmentos, o grupo é presidido pela empresária Luiza Helena Trajano, da rede Magazine Luiza.
Peça vetada pela Funarte faz da dificuldade uma bandeira, o elenco de "Res Publica 2023
Priscila Prade/Divulgação

Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Planeta, afirma que censurar um livro é algo nocivo, abominável e também pouco inteligente. “Acaba promovendo a própria obra”, afirma. Machado cita o caso Paulo Freire. “Com a perseguição absurda que ele sofre nos dias de hoje, seus livros estão vendendo muito mais.”

Em dezembro, diante da medida adotada pelo governo, as organizadoras do projeto solicitaram a devolução dos livros doados.

“Agradecemos a colaboração e permanecemos à disposição para qualquer outro esclarecimento”, respondeu a Funap na mensagem em que comunicou a restituição.

OUTRO LADO

Em nota, a gestão Doria afirma que "não faz juízo de valor dos livros" e ressalta que "não há nenhum tipo de censura ou veto a livros".

"As publicações são dos mais diversos gêneros literários, origens e matizes ideológicos. Entre os autores estão George Orwell, Franz Kafka, Gabriel García Márquez, Ernest Hemingway, Mia Couto, José Saramago, Machado de Assis, Jorge Amado, Luiz Ruffato, Marcelo Rubens Paiva, Marçal Aquino, Fernando Moraes, Patrícia Campos Mello, Aldous Huxley, Jack London, Ian McEwan e J.M. Coetzee", diz o texto enviado pela assessoria de comunicação da Funap.

O governo do estado acrescenta que "faz um rodízio de títulos e é possível que os livros sugeridos entrem futuramente para remição pela leitura".

"Os detentos podem ter acesso aos outros 650 mil livros que estão disponíveis nas bibliotecas das unidades prisionais. Por isso, não há nenhum tipo de censura ou veto a livros. Será realizada uma reunião amanhã (12) com a colaboradora que sugeriu os títulos para debater a inclusão das publicações. O encontro estava agendado para ontem (10), mas não foi realizado por causa das chuvas que atingiram a capital", completa a nota.
 Lista de livros que o governo de Rondônia pretendia recolher de escolas e bibliotecas
Imagem:  Reprodução


TENDÊNCIA

A medida do governo paulista encaixa-se em contexto mais amplo de censura a obras artísticas no Brasil.

No começo do mês, a Secretaria de Educação de Rondônia distribuiu um memorando e uma lista de livros para serem recolhidos das escolas por conterem o que foi definido como "conteúdos inadequados" a crianças e adolescente. A pasta voltou atrás após questionamentos à medida.

A lista das obras censuradas incluía 43 títulos, de autores como Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Euclides da Cunha, Ferreira Gullar, Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca, Franz Kafka, Mário de Andrade e Machado de Assis.

No ano passado, diversos espetáculos foram atacados ou censurados pelo governo federal, sob comando de Jair Bolsonaro, ou por algum de seus órgãos.

Parte deles, como o músico Arnaldo Antunes, a peça "Res Publica 2023", pôsteres de filmes nacionais que estavam nos corredores e no site da Ancine (Agência Nacional de Cinema) e o longa-metragem "Bruna Surfistinha", foi reunida em festival contra a censura promovido pela Prefeitura de São Paulo em janeiro de 2020.




Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO

Contraponto: 

Como profissional do carcere por mais de 29 anos consecutivos, trabalhando em diversos setores da Unidade Prisional de um regime semiaberto, tais como cozinha, padaria, compras, judiciária, e na maior parte do tempo, mais de 20 anos na área de Segurança e Disciplina, posso falar com convicção, a remição de pena em minha humilde opinião, teria que valer apenas para o trabalho, e tem mais, trabalho sem retribuição pecuniária. 

Sim, trabalho de cunho social, em áreas críticas da sociedade, tais como, construção e manutenção de estradas e vias públicas urbanas, construção de casas populares para os mais necessitados, construção e manutenções de escolas públicas, hospitais, pronto socorros, quartéis, delegacias e postos militares, unidades básicas de saúde, creches e asilos públicos. 

Somente se o detento ou reeducando estivesse de acordo em trabalhar gratuitamente e em prol da sociedade que foi vítima de seus delitos ou crimes ele teria direito a remição de penas nos moldes que está estipulado nos dias atuais. Três dias de trabalho por um dia de desconto na pena. Pois se ele estiver recebendo dinheiro para trabalhar e ainda assim for beneficiado com a remição, esta se torna um prêmio, muito maior ainda com a leitura de livros.

Estes deveriam ser colocados a disposição dos detentos e sentenciados e tidos como obrigação sua leitura, para estimular a cultura e o conhecimento de geografia, história música, e principalmente leituras técnicas de ensino de trabalho, tão só e apenas, pois a arte da leitura tem que ser estimulada e desenvolvida como um prazer, que na verdade o é, e não como um prêmio para diminuir a sentença de criminosos.