Facção criminosa usa rede de organizações sociais para assinar contratos com municípios, lavar dinheiro do tráfico e desviar verbas públicas, revelam inquéritos.
Marcelo Godoy e Valmar Hupsel Filho , O Estado de S.Paulo
09 de novembro de 2020 | 05h00
Prédio, em Barueri, onde se localiza a sede de uma das empresas utilizadas pela facção para fazer contratos com a prefeitura Foto: Alex Silva/Estadão |
A construção de uma rede de organizações sociais de prateleira é a forma encontrada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) para ganhar contratos públicos e se infiltrar em administrações municipais de pelo menos três Estados. Empresas de prateleira são CNPJs formalmente constituídos, mas que não têm atividade. Em São Paulo, há indícios de que a facção atuava em busca de contratos em nove cidades.
Investigações da Polícia Federal (PF) e da Polícia Civil paulista mostram a ação do grupo em São Paulo, Paraná e Minas. Os contratos públicos teriam, segundo os investigadores, uma dupla finalidade: a construção de empresas respeitáveis para a lavagem de dinheiro do tráfico e o desvio de recursos públicos para a organização criminosa.
A rede de OSs mantida por grandes traficantes de drogas ligados ao PCC começou a ser desbaratada durante as investigações que levaram ao esquema que controlava a coleta de lixo e a saúde pública de Arujá, na Grande São Paulo. O centro do esquema teria sido criado, segundo a investigação, por Edson Rodrigues Peres, o Alemão, candidato a vereador em 2016 pelo PSDB em Barueri.
Gravações ambientais obtidas pela polícia mostram que o acusado chegou a pôr na direção de um dos institutos usados pelo grupo um morador de rua – o uso de laranjas para dirigir as OSs seria uma das práticas da organização criminosa. De acordo com as investigações, o grupo atuaria “fora do crime de tráfico de drogas na cidade de Barueri, executando serviços públicos através de contrato de gestão, por intermédio de organização social criada por sua organização criminosa, expediente que utiliza ou utilizou também nas cidades de Arujá, Guarulhos, Santa Isabel e Suzano”.
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Nas conversas gravadas apreendidas pela polícia, Alemão contaria sobre sua relação com o megatraficante de drogas Anderson Lacerda Pereira, o Gordo, acusado de manter relações com o cartel mexicano Los Zetas e com mafiosos da “N’dragheta”, principal organização criminosa da Itália, para onde teria mandado toneladas de cocaína. A defesa de Gordo, que está foragido, nega os crimes.
O advogado Rafael Munhoz Ramos, que defende Alemão, também alega inocência do político. Segundo ele, houve um engano. A polícia o teria confundido com outra pessoa, um bandido da facção que também tem o apelido de Alemão. Os documentos da Operação Soldi Sporchi, porém, afirmam: “Para adquirir organizações sociais, Anderson se vale de um indivíduo de vulgo Alemão. Trata-se de Edson Peres, que foi candidato a vereador em Barueri”. Gordo teria comprado do esquema o Instituto Inovação de Gestão Pública. “Mais tarde também teria sido vendido parte do Inst. IDGT, no que concerne às atividades da O.S. em Arujá”, escreveu o delegado Fernando José Goes Santiago, que conduz a investigação da Polícia Civil.
Em outra conversa, Alemão participa de uma reunião de lavratura de ata para a criação da OS Instituto Referência de Gestão Pública, outra suposta organização de prateleira criada para trabalhar com prefeituras.
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Federal
O esquema descoberto em São Paulo é semelhante ao investigado pela PF em um dos desdobramentos da ofensiva contra a lavagem de dinheiro do PCC. A apuração já levou a polícia a bloquear, só na Operação Rei do Crime, R$ 730 milhões em bens em nome de pessoas ligadas à facção.
“Eles levam vida de empresário, frequentam clubes, dão festas, enfim, têm uma vida luxuosa”, disse o delegado Elvis Secco, coordenador-geral de Repressão a Drogas e Facções Criminosas da PF. Secco afirmou que a primeira vez que se deparou com a facção infiltrada no poder público foi em uma investigação em Londrina, na Operação Ferrari, em 2013. “Eles tinham ligações com um coronel e com políticos locais.”
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Áudios e mensagens em poder da polícia mostram acusado relatando que "Gordo" pagou R$ 1 mi por habeas corpus. O arquivo de áudio foi criado em 25 de agosto de 2018. Sua transcrição pela perícia ocupou 15 páginas de um relatório da Operação Soldi Sporchi. A conversa é uma das provas da polícia do uso de empresas de gaveta para que a organização criminosa se apoderasse de contratos com o setor público. No diálogo são mencionados diretores de hospitais e da empresa de limpeza urbana de Arujá, além de um secretário do município.
Edson Rodrigues Peres, o Alemão, diz na página 6 do documento que o grupo do traficante Anderson Pereira Lacerda, o Gordo, pegou “empresas em dia”. Na conversa, o acusado relata que Anderson tem “mais de 200 quilos”. “Pra você ver o tamanho do cara; cara inteligente, o negócio dele é só enviar droga pra Europa”. Alemão prossegue descrevendo Anderson para seu interlocutor. “O cara fala: ‘Se vocês quiser me conhecer melhor é só entrar na Interpol’. Ele (Anderson) é caçado pela Interpol, cara.” É neste momento da conversa que Alemão relata a suposta corrupção de “ministro”, sem citar de qual tribunal.
Quando seu interlocutor diz “você está brincando”, Alemão responde: “Só que ele tem um habeas corpus do ministro. Fala (que) gasta um milhão por ano com esse ministro ‘para ele me dar um habeas corpus pra eu ficar livre’”. Nesse trecho, a perícia detectou “risos”. “Valha-me Deus”, responde o interlocutor.
Em troca de mensagens de um acusado e um advogado, a polícia achou indícios de pagamentos de US$ 50 mil e de US$ 30 mil para um magistrado que analisava casos de membros do grupo de Gordo, que está foragido e, de fato, está na lista vermelha da Interpol.
Fonte: O Estado de São Paulo
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