03 outubro 2017

DESEMBARGADORA ACUSA PRESIDENTE DO TJ DE OMISSÃO SOBRE OBRAS SUSPEITAS

Contratos de obras do Tribunal de Justiça de São Paulo provocaram uma disputa entre integrantes do órgão.



FREDERICO VASCONCELOS
DE SÃO PAULO
03/10/2017  02h00

A desembargadora Maria Lúcia Pizzotti


A desembargadora Maria Lúcia Pizzotti acusa o presidente da corte, Paulo Dimas Mascaretti, de omissão por não mandar apurar fatos graves e inconsistências em contratos. Ela deve protocolar um pedido de providências no Conselho Nacional de Justiça.

Pizzotti sustenta que Mascaretti não acolheu vários pedidos de impugnação que apresentou, tendo prorrogado contrato com o consórcio Argeplan-Concremat, alvo de investigações.

Em vez de cancelar uma nova licitação, como ela sugeriu, o presidente aprovou o terceiro aditivo num contrato firmado em 2013 com o consórcio, para elaborar projetos e acompanhar obras executadas por outras empresas.

"É um contrato valiosíssimo, de R$ 130 milhões", diz Pizzotti.

Em relatórios enviados ao presidente do TJ-SP, a desembargadora registrou "o desconforto de o tribunal permanecer atrelado a uma empresa que, nos últimos meses, vem ocupando as páginas policiais dos jornais".

Um dos sócios da Argeplan é o coronel PM aposentado João Baptista Lima Filho, investigado na Lava Jato. Amigo do presidente Michel Temer, o coronel Lima é um dos alvos da delação da JBS.

A desembargadora também registrou que a Concremat é investigada por supostos erros de projeto e de execução da Ciclovia Tim Maia, no Rio de Janeiro, que desabou em abril de 2016, quando morreram duas pessoas.

Mascaretti diz que isso não impede a prorrogação dos contratos, que vêm sendo cumpridos. Ele afirma que submeteu os questionamentos da desembargadora ao Órgão Especial, a instância máxima do tribunal.

O presidente da Comissão de Assuntos Administrativos do tribunal, desembargador Ademir de Carvalho Benedito, informou ao colegiado que a comissão ouviu a desembargadora. "Nenhuma irregularidade existe", disse.

CERCEAMENTO

Pizzotti afirma que Mascaretti proibiu que as secretarias do tribunal fornecessem dados diretamente a ela, centralizando as informações no gabinete da presidência.

Na semana passada, o presidente proferiu uma decisão monocrática, determinando que a questão não deve voltar ao Órgão Especial. Pizzotti diz que, na semana passada, o presidente disponibilizou a vista aos autos do orçamento, o que negara antes.

"Estou tendo o meu direito de desembargadora e de cidadã cerceado", diz ela.

O caso veio à tona no Órgão Especial no dia 26 de julho. Pizzotti atuava como suplente e votou pela não aprovação da proposta orçamentária de 2018. Ela reclama que Mascaretti não publicou o voto divergente.

Coordenadora da comissão de restauro do Palácio da Justiça, ela analisou outros contratos de obras e serviços. Alegou que não obteve dados para justificar gastos com "cifras desproporcionais".

"Os valores referem-se apenas a projetos, e não a obras a serem executadas", afirma.

Responsável pela execução da obra de restauro, a Concrejato pertence ao mesmo grupo da Concremat, responsável pela fiscalização dessa obra. "Isso é conflito de interesse", diz.

Em três anos, o tribunal pagou cerca de R$ 680 mil a um arquiteto da Concremat, especialista em restauração. Ele foi substituído por um funcionário do tribunal. Para Pizzotti, a fiscalização por empresas do mesmo grupo nunca foi necessária.

SINDICÂNCIA

Ela pediu a abertura de sindicância. A desembargadora já havia criticado o aumento do número de engenheiros contratados para fiscalizar obras. Afirmou que eram "pífios" os relatórios sobre engenheiros "transitando de uma comarca para outra".

A desembargadora diz que 91% dos projetos envolvem obras de proteção e combate a incêndio, mas quase a totalidade não foi executada.

"Possivelmente, por ter como sócio um coronel da PM aposentado, praticamente todos os projetos de proteção e combate a incêndio em órgãos públicos de São Paulo foram executados pela Argeplan", diz a juíza.

Ela questionou, entre outros itens, R$ 3,9 milhões para manutenção preventiva nos carros da frota do tribunal e R$ 250 mil para "reforma da cozinha do apartamento funcional dos juízes de Jundiaí".

O Tribunal de Justiça de São Paulo afirma que todas as dúvidas suscitadas pela desembargadora Maria Lúcia Pizzotti foram analisadas por órgãos internos e externos, que atestaram a inexistência de irregularidades.

"Os motivos pelos quais a magistrada solicitou o cancelamento da contratação não se sustentam". O Tribunal de Contas do Estado e os órgãos do tribunal concluíram pela regularidade da nova licitação, tendo havido audiência pública.

Foi indeferido pelo Órgão Especial pedido de instauração de averiguação.

Segundo o tribunal, o consórcio Argeplan/Concremat firmou contrato em agosto de 2013, após vencer concorrência para realizar projetos, sob demanda, e dar apoio técnico para acompanhar pequenas obras civis e serviços nos mais de 700 prédios ocupados nas 319 comarcas do Estado. Até o primeiro semestre, 2017, o consórcio realizou 635 serviços.

OUTRO LADO

O TJ-SP informa que houve o pagamento de R$ 49,4 milhões. O contrato previa a possibilidade de pagamento de até R$ 94 milhões durante toda sua duração.

A assessoria diz que não houve acréscimo de qualquer valor com o aditamento firmado em julho de 2016.

O tribunal informa que a Lei de Licitações permite a participação de empresa autora do projeto para fiscalização, supervisão ou gerenciamento das obras.

"O acompanhamento/fiscalização das obras sempre foi feito, em tempo integral, por servidores do tribunal. As atividades de engenheiros e arquitetos contratados possuem caráter meramente assistencial, não recaindo sobre eles qualquer responsabilidade técnica", diz o TJ.

O TJ-SP afirma que o valor da manutenção preventiva para 662 veículos da frota da capital corresponde a R$ 503 mensais por veículo, pagos apenas sob demanda.

O tribunal afirma que não existe apartamento funcional de juiz em Jundiaí. Diz que se trata de reforma no fórum para adaptar duas antigas cozinhas, transformando-as em gabinetes para novos juízes.

A Concremat não se manifestou formalmente sobre o desabamento da Ciclovia Tim Maia. A empresa informa que a obra de restauro parcial do Palácio da Justiça foi contratada junto à Concrejato.

A reportagem não conseguiu contato com os sócios da Argeplan.

PRECONCEITO

Em 1988, quando tomou posse como juíza do Tribunal de Justiça de SP, Maria Lúcia Pizzotti ouviu de um desembargador uma frase que não esqueceria: "A senhora sorri demais para uma juíza".

No início da carreira, um corregedor-geral do TJ-SP disse que era contra mulheres na magistratura. "Mulheres servem para cuidar da família, procriar e pilotar o fogão".

"Fui vítima, profundamente, de machismo frontal, não disfarçado, hoje chamado de sexismo", diz ela.

"Cansei de ouvir, em discursos de posse, que as mulheres vieram 'embelezar' a carreira. Nenhuma mulher quer ouvir isso. Isso é tosco."

"Acho que o machismo não acabou, mas hoje é velado. Hoje é politicamente incorreto alguém se declarar machista. Até hoje não tivemos uma magistrada em nenhum cargo de cúpula do tribunal".

Ela diz que sua carreira foi "muito dura".

"Eu quase não fui confirmada. Eu fiz denúncias de corrupção, como juíza substituta. Eu fui confirmada pela carreira só por três votos. Sou muito extrovertida. Eu também sou muito transparente. Isso assusta."

Em 1998, a juíza, mãe de quatro filhos, entrou com ação no Juizado Especial de Pequenas Causas contra a Parmalat, porque a empresa havia mantido uma campanha publicitária quando não tinha no estoque os brindes prometidos: mamíferos de pelúcia.

Em 2008, ela denunciou o descumprimento do regimento interno, ao revelar que 39 juízes atuavam como assessores da cúpula do tribunal em funções burocráticas, afastando-os da principal atividade: julgar.

Em 2014, ao tomar posse como desembargadora, disse que "foi muito difícil chegar até aqui, mas consegui, com muita luta".


Fonte: Folha de São Paulo